sexta-feira, dezembro 31, 2010

Motivações

Este foi o ano. Foi - como todos são - diferente de todos os outros. Foi o ano de me descobrir debaixo de água. Foi o ano do mergulho, das viagens a Sesimbra aos fins de semana, dos buddy check, do diamante de Dalton e de outras preciosidades. De descobrir a marginal outra vez. De começar a correr em Março para acabar agora com 300 quilómetros feitos. Foi o ano de começar novos projectos, acabar e começar outra vez.
Este foi o ano de meter na cabeça e começar a fazer o que há muito andava para começar a ser feito. E começou com deadline bem definido e vontade de o cumprir. Este foi o ano de voltar a Londres, de namorar em Munique, de andar por aí. De pisar terrenos com história e de histórias tristes.
Foi o ano de me descobrir outra vez. De conhecer pessoas, de ouvir pessoas, de ouvir conselhos.
Foi o ano de começar e acabar muita coisa. Foi o ano de fazer cenários, de criar projectos, de fazer pesquisa.
Foi o ano da crise, das crises, das conversas e do início da Conversa. Foi o ano de criar expectativas, de arranjar motivação, de sonhar um bocadinho e alimentar o que um dia - que não foi aquele - será verdade. Foi o ano de grandes noites de verão, das sardinhadas, dos putos à solta no jardim, de dias maravilhosos de sol, de praia, de calor, de piscina, de andar a pé e de ver as estrelas.
Foi o ano de ver palavras minhas puxadas na rede, ouvidas, escutadas, comentadas por quem não me conhece.
Foi o ano do grande relatório que parecia não ter fim. Foi o ano das apostas ganhas em almoços e perdidas ainda por pagar. Foi o ano de ver como se faz lá fora. De voltar pela segunda vez a Londres por um dia para ficar dois. De ficar retido e fazer em oito horas o que se faz em 2 e meia.
Foi o ano de criar novos hábitos, de olhar para dentro. Foi o ano de fazer para mim como nunca antes fizera.
Foi o ano de ver e ouvir grandes bandas, de descobrir novos sons. De incutir paixões, despertar para outras realidades, abrir os horizontes. Este foi o ano da rede. Foi o ano de escrever muito. De gritar muito.
Este foi o ano de descobrir dores maiores. Foi o ano de sofrer como não sabia ser possível. Este foi o ano de priorizar.
Este foi o ano das decisões difíceis. Foi o ano de fazer o que não se deseja porque não havia outra forma de fazer. Foi o ano de querer e não querer. Foi o ano de ser pai - e mãe 2 noites por semana. Foi o ano das conferências, de ouvir quem pensa de forma diferente. Foi o ano de começar a aprender a escrever outra vez com letra manuscrita e ditongos na ponta da língua. Foi o ano de começar a escola. Foi o ano dos trabalhos de casa. Foi o ano do iPad - deste - e do iPhone. Foi o ano de reencontrar quem não via há mais de 10 anos e começar uma conversa como se tivesse sido deixada a meio.
Este foi o ano dos amigos de sempre e dos almoços de sempre. Este foi o ano dos amigos novos e dos novos almoços. Este foi um ano cheio de ideias novas. Este foi um ano novo cheio de dias novos. Este foi um ano de sentir de novo.
Este foi o um bom ano.


O próximo será melhor.

terça-feira, dezembro 21, 2010

Um chuto na conversa

- queres falar?
- não
- mas não sabes que é importante? Tu é que 'tás sempre a dizer que temos que falar...
- mas não quero... hoje não adianta
- oh
- não vale a pena. Vamos falar e depois chateamo-nos e hoje não me apetece.... não insistas, estou cansada.... e não adianta
- tu é que sabes.
-(...)
-(...) porra, que golo do caraças! Tu viste aquilo? Como é que o gajo faz aquilo?!
(...) este não era do Benfica o ano passado?

in "Di Maria e o planeamento familiar"

terça-feira, novembro 02, 2010

Apanhar as folhas




Aquilo que nos liga – a nós pais – umbilicalmente aos filhos ultrapassa a razão de sentir que se ama, de saber que se ama e de pura e simplesmente, se amar.
Aquilo que nos une, que nos liga, que nos torna uno é qualquer coisa que me transcende e que experimentei sem querer, sem agendar e sem saber porquê.
Uma dor de barriga é uma dor de barriga e mesmo que persista, a maioria dos pais com quem falei assegurou-me que não iam a correr para o hospital à primeira. Nem à segunda, nem à terceira. As dores de barriga dos putos são um mundo de coisas. De coisas que comeram, de excesso de correria, de dores musculares, de dores inventadas, de ronha, de “quero é mimo” e eu sei lá que mais. E em 6 anos, a princesa e o urso tiveram estas todas. Ele em 3 anos teve se calhar até mais do que ela mas é uma questão de feitio – e não tem nada a ver com o feitio da barriga.
Acontece que um destes Sábados a Pim se queixou e como não era a primeira, a segunda, ou a terceira nessa semana – ainda que estivesse a ser medicada por causa de uma infecção respiratória simples – achei que... se calhar não se perdia nada e passava nas urgências só para despistar o que fosse.
E assim foi. Às 2 da tarde entrámos nas urgências e depois de uma rápida triagem (“o que dói princesa?” “a barriga” “então vamos esperar um bocadinho que o doutor já vai ver isso, está bem?”) lá entrámos e a doutora lá a viu e carregou e doeu. E ela não é de se queixar sem doer. E doeu quando se carregou em vários sítios e .... provavelmente será uma infecção urinária. OK. Pensei. Coisa típica de meninas. É natural. É normal. Se calhar as queixas eram disto mas pronto. Sem stress. Façam-se análises. Fizeram-se mas, élasse, o resultado não aponta nada de anormal; nenhum valor estranho.
E dispara a Pim: então e agora? Fazemos uma ecografia?
A médica acha graça que uma piolha de 6 anos se saia com esta. “sabes o que é? Já fizeste alguma?”
“não sei muito bem mas nunca fiz”.
“então agora vais fazer.”
E fizemos. E as primeiras pedras desabaram sobre a minha cabeça. Sim, sou um leigo. Ou melhor, sou uma besta. Quem me manda olhar e tentar perceber o que raio é uma massa com um formato de lágrima na barriga da minha filha? Às perguntas sobre o que será, o técnico (que frisou muitas vezes e de forma clara: eu não sou médico. Os médicos é que depois interpretam o que nós fazemos) chutou para canto.
Voltámos à médica. Cara séria.
Diagnóstico: quisto do Úraco. Perdão???? Quisto o quê? De onde? Em português por favor.
Lá explicou que não era nada de grave e que não tinha a certeza mas que ia chamar o cirurgião de serviço para o ouvir. E ouvimos todos. Ouvimos que o melhor era ir para o D. Estefânia que eles é que são pediatras e especialistas e era melhor.
E se era melhor, fomos.
Chegámos e repetimos tudo outra vez: inscrição, triagem, consulta, análise de urina, ecografia, análise ao sangue e eis que algo difere do primeiro hospital. Aqui há certezas. Aqui, que são especialistas em crianças têm a certeza: é de facto um quisto do Úraco. Coisa rara. Pouco comum. Estranho nunca ter dado sinal. Não haver sintomas anteriores. Se é estranho eu não sei. Que é estranho para mim estar num hospital com a minha filha a ouvir que ela tem que ser internada porque tem uma merda num sítio cujo nome nunca ouvi falar, é. Mais que estranho. Põe-me doente. E como doente, estou pronto a tomar o lugar dela. Cortem-me, abram-me, tirem-me peças. Oh para mim aqui tão disponível, enorme. Vá lá caraças. Metam-se com alguém do vosso tamanho. A minha Pim? Não. A minha Pim não pode ficar internada. Tem 6 anos caraças. Como é que eu lhe explico que ela tem que ficar aqui. A dormir. Aqui no hospital. Como??? Ainda hoje de manhã esteve numa festa com os amigos da escola. Oh que merda.
Mas fica.
Entra a dormir que o sono toma conta dela às 2 da manhã mas tenho que a acordar. A médica quer que comece a fazer antibiótico já. Uma colher? É? Ah... endovenoso.
É para colocar um cateter na minha filha, é isso? É para espetar a mão pequena da minha princesa; para lhe deixar um tubo ligado. O que é isto? Que filme é este?
Por fim adormece novamente, já com a mão ligada a uma máquina que se encarrega de lhe dosear o soro e o antibiótico e mais o que tiver que ser.
Nessa noite a mãe fica. Mas de manhã eu volto. Dou-lhe beijos até não poder mais. Não quero ir. Não as quero deixar. Mas tem que ser. E vou.
Não acredito muito bem nem consigo explicar o que sinto. Sei que me sinto esvaziar. Não me ocorre nada. Não tenho fome apesar de não ter jantado. Não tenho sono apesar de andar nisto há mais de 10 horas. Não tenho nada. Estou infeliz. Tenho a minha filha a dormir num hospital para ser alvo de uma intervenção cirúrgica que terá lugar passados 6 dias.
E esses 6 dias foram vazios de mim. Sabia que tinha de a distrair. Tratar dela. Dar-lhe mimos, presentes, ocupar-me dela – e da mãe. O mais pequeno foi literalmente despachado para o Alentejo sem uma explicação, sem aviso prévio, sem data no bilhete de regresso. E nunca foi assim. Mas desta vez não havia hipótese.
Os dias correm devagar. Muito devagar para as horas todas de entreter uma criança de 6 anos que não é parada. Que gosta de correr, de brincar, de andar de um lado para o outro. De fazer mil e uma coisas nos seus dias. E de repente, horas a fio como grandes calhaus que tentam passar na parte estreita de uma ampulheta. Não passam.
Os filmes sucedem-se. Os desenhos. As conversas. Mais desenhos e filmes e cromos e cadernetas e bonecas e mais desenhos e actividades e outro filme. E ainda não estamos na hora de almoço.
Come pouco. Não tem fome, não lhe apetece. Incomoda-a o “bóbi”. A máquina que leva atrás de si, presa a si. Apita. Paramos: stop-start. Vamos embora. Sensível a bichinha que apita por tudo e por nada – e a paciência que ameaça esgotar-se.
Chegam as visitas. Muitos mimos, presentes e lágrimas escondidas; que dó de alma ver a princesa assim. É a primeira vez e é horrível.
Porque as crianças são assim, ao princípio da tarde já tem uma amiga com quem partilhas as bonecas. Trocam os casos clínicos e os cromos. Eu tenho uma bolinha maluca e tu? Eu tenho um apêndice. Queres ser esta ou esta? Esta, pode ser? É a Barbie princesa da moda.
Fujo de vez em quando para mais um café tirado na máquina das urgências e mais um cigarro na entrada. Bebo o sol quando posso e cafés a mais. Cigarros a mais. Ao segundo dia aguento-me. E tu? Estás bem? Queres que eu durma cá hoje? Estás com um ar cansado.
Não, eu fico. Está bem, mas amanhã quando eu chegar vais a casa descansar. Combinado.
Passa mais um dia. Chega a semana e começam os telefonemas. Os amigos vão sabendo, a família já sabia. Os colegas ligam, mandam mensagens, mandam presentes.
Os dias vão andando, devagar. Hora após hora já sou mais do hospital. Destes corredores que se pintam de várias cores. Da pedra polida pelos passos nas escadas. Já não subo nem desço no elevador. Já sei onde posso parar o carro. Já sei por onde entro e por onde saio. Os seguranças já mandam desejos de melhoras. As enfermeiras já sabem quem somos e nós a elas. E são todas absolutamente fantásticas. Fico sem saber se têm um coração enorme ou se levam um de plástico para o trabalho. Se não for assim, não sei como não se parte. São muitas crianças naquele hospital. São muitas crianças doentes e algumas com doenças que não deveriam ter. E algumas com tempo a mais ali e menos a brincar. Algumas estão ali há meses. Algumas tratam as enfermeiras por mãe porque a mãe está a mais de 3 mil quilómetros e lá, lá não há dinheiro para comprar as máquinas que há aqui no hospital, disse-nos um dia num passeio pelos corredores. A todas trata por mãe e todas o tratam como um filho.
Os dias vão. Segunda, terça, quarta. É amanhã. Amanhã é a operação.
Vai doer pai? Não meu anjo. Dão-te um xarope para ficares a dormir e tu não sentes nada. Sorri. E eu sorrio de volta. Porque na ignorância de quem não passou por isto antes não sei como é o depois.
Chega a hora. Vamos os 3 de mão dada. Pelo elevador, pelo corredor até ao bloco. Chegamos. O mano já lhe veio dar um beijinho de manhã e fartou-se chorar quando percebeu que não vinha para ficar. Até voltar pergunta todos os dias quando acorda: hoje é amanhã?
Estamos lá dentro. A separar-nos está um banco corrido de madeira que faz a fronteira entre a nossa zona e a zona interdita. A passagem faz-se por cima. Mais um beijo e mais outro e não custa nada e sorrisos e piadolas forçadas que a fazem sorrir até desaparecer num corredor. Agora não sei o que fazer. O que é que é que fazemos?
A enfermeira disse que tínhamos de comer. Que o jejum deles não pode ser o nosso e que temos de comer. Vamos agora. Vamos já que a operação demora hora e meia.
Pela primeira vez, saio do hospital pelo meu pé. Descemos a rua e entramos num café. Duas tostas mistas, um bolo a meias que já vai ser difícil empurrar mas tem que ser. E nisto já passaram 45 minutos. Caraças. 6 dias em que os minutos não passam e agora isto. 2 cafés e a conta por favor.
Subimos, passo apressado. Entramos e chegamos onde a deixámos. Esperamos.
Esperamos.
Esperamos. Levanto-me porque não consigo estar sentado. Ouço umas lágrimas sorvidas em silêncio. Faço-lhe uma festa. Levanto-me e espero. Passo atrás de passo atrás de passo até à parede. Giro. Passo atrás de passo atrás de passo atrás de passo. Paro. Viro a cabeça. A porta mantém-se fechada. Faço isto atrás disto atrás disto.
Passou uma hora e meia mais uns descontos desde que entrou. A porta mantém-se fechada. O silêncio silencioso. Os meus passos seguem os meus passos.
Não penso em nada que consiga fixar. Penso em tudo o que não devo. Ilustra-me o meu primo as ideias com uma viagem onde a cabeça só pára nas estações que não devia.
O mundo parou. O relógio não. Questiono tudo, ponho todos os cenários e abato-os com rajadas de “nem pensar; está tudo bem”. Tenho carregadores disso até mais não. Mas a porta não se abre e mais cinco, mais dez. 2 horas. A porta fechada.
Já não sei se sou eu que ando se o chão anda por baixo de mim. A porta fechada abre-se por fim.
Está tudo bem. Correu bem mas era maior do que a médica esperava. Estava mais colado, foi mais trabalhoso. Não deu por laparoscopia. Tentei mas não deu e tive que fazer uma incisão.
Um de vocês pode ir ter com ela.
Eu espero.10 minutos depois uma mensagem: está muito queixosa.
Não imagino. Espero que saia e ainda dormita quando subimos. Tem tubos, sondas, cateteres. Tem dores quando acorda. Não quer a sonda. Não se quer mexer. Cada movimento fá-la gritar. Nem deitada nem de lado nem nada. Pergunta primeiro à mãe e horas mais tarde a mim: vou morrer?
Imagino as dores que não lhe consigo tirar. Imagino.
E o pior é quando grita em silêncio. Abre os olhos grandes. Abre a boca e chora. Não há som sequer. Só dor. Fazemos tudo quanto podemos. Festas, beijos. Já passa amor. Tem calma. Respira fundo filha. E o primeiro dia e meio é isto. Dor atrás de dor atrás de dor.
Parece que todos os passos que dei enquanto esperava foram em cima dela. Aquela barriguinha pequenina, doce, macia.

Não

me

toques.

A pouco e pouco a dor ameniza. A pouco e pouco voltam as novas rotinas intervaladas com dores.
Os sorrisos só voltam quando sai a sonda. De um segundo para o outro. Literalmente de um segundo para o outro.
E esse sorriso fez-nos sorrir outra vez. Bolas. Tinha saudades de a ver assim. A rir, fazer carinhas tontas.
Foram assim 10 dias horribilis.
Perdemos a noção dos dias, das horas. Não tivemos frio nem calor. Não soube nada do mundo e pelo que vi quando acordei deste pesadelo, não perdi nada.
Chorámos, se calhar menos do que devíamos mas não tivemos tempo.
2 dias depois da operação perdi o rumo por momentos. Fui-me abaixo. Desci ao rés do chão do que sentia e sai porta fora.
Chorei por uma coisa tonta. Porque a obriguei a sentar porque ela tinha que se sentar. Era preciso forçar algumas posições. A médica disse. Era preciso. Mas não se explicam estes estados de necessidade clínicos a uma criança de 6 anos que antes disto nunca tinha passado mais que 2 horas num hospital.
E então eu tive de a obrigar a sentar e ela olhou para mim e não disse nada. Mas naquele segundo em que olhou, naquele segundo em que a puxava, devagar com cuidado, ela olhou para mim e odiou-me. E então não aguentei. Sai de fininho porque a minha irmã tinha chegado e ela distraia-se com a tia. E eu sai e chorei porque não consegui suportar aquele olhar de ódio nos olhos da minha filha. E chorei mesmo. E nesse mesmo dia tirou a sonda e sorri porque a vi sorrir.
Que dia.
Sexta tirou os pontos. Está sem dores. Está naquela fase perigosa em que se entra quando aparentemente está tudo bem.
Amanhã regressa à escola e nós ao trabalho. Amanhã regressamos aos dias normais.
Quero rapidamente apagar as lágrimas todas, as dores todas, as marcas. Quero esquecer que estive 10 dias praticamente a viver ali.
Quero esquecer que a minha filha perguntou 2 vezes se ia morrer.
Quero lembrar-me das pessoas fantásticas que trataram dela durante 10 dias – e às vezes, com a palavra certa, também de nós.
Quero lembrar-me do Tó, a quem a Pim deu um filme e que prometemos acompanhar senão regressar ao seu país.
Quero lembrar-me das mensagens todas dos amigos todos. Dos colegas todos que fizeram de um dos dias um Natal antecipado com presentes e postais e palavras doces.
Quero lembrar-me de voltar ali um dia destes como na semana passada para deixar brinquedos para quem lá passa uma noite que seja.

E ontem estive não sei quanto tempo a apanhar as folhas do jardim no Alentejo.
E como eu precisei de um jardim com folhas por apanhar nestes 10 dias.

sábado, outubro 02, 2010

Noite cheia




Nem lua nem nada (que se esconde atrás das nuvens para que não se veja)
No molhe da marina umas palmeiras que ontem não estavam lá. Parece outro o sítio.
Parece outro país.
Desta vez somos 7. Nós os 4 mais 3 que acabámos de conhecer. E isso não importa. Ainda o barco não saiu e já estamos apresentados.
E vamos.
E chegamos.
Foi rápido desta vez.
O fato já está vestido. O equipamento montado e agora só falta ser-mos um só de garrafa às costas.
E demora nada a acontecer. Cada um sabe das suas coisas.
Coletes e garrafas dispostos lado a lado. Cada um identificado com a mistura que leva lá para baixo. Luvas, barbatanas, máscara, lanterna. Está tudo. Estou todo.
Costas ao mar e mergulho.
À esquerda, luzes difusas. À direita, água.
E então descemos.
Somos 4 pontos de luz (que um feixe para ser feixe tem que ser maior que aquilo).
Quatro, cinco, sete, dez, doze metros, treze metros. Estamos no fundo que não é fundo. Escuro é. Fundo não.
Sinais de luz. Estamos bem. E então seguimos.
Por 40 e tal minutos seguimos pelo fundo. Nunca a mais de um, dois metros da areia. Nunca a mais de dois, três metros uns dos outros.
Porque ao contrário do dia, diz que a noite escura tira a visibilidade e que lá em baixo quatro metros é como daqui para “onde é que eles estão?”.
Não,
se vê,
nada.
E isso impressiona.
Como impressiona a quantidade de vida e como nos recebe.
Estive com um pequeno peixe na mão e não é uma questão de ter sido mais ou menos tempo do que esperaria. Não esperava um segundo que fosse.
Não esperava nada.
Não esperava que um polvo brincasse connosco, que os peixes dançassem à nossa volta.
Não esperava que os chocos fossem fosforescentes nem que o tempo passasse a correr por nós.
Queria agarrar noutra garrafa e voltar para baixo. Voltar a encontrar a concha perfeita que os fez sorrir no dia seguinte.
Ver outra vez um peixe galo que tem tanto de bonito como – dizem – de raro de avistar.
Queria outra vez o mar quieto, a água boa de fria sem estar gelada.
O tempo lá em baixo sem luz nem nada. Só estar. Olhar à volta e ver. Ver só. Descobrir uma solha na areia com os olhos de fora. Fazer-lhe uma festa.
Inspirar devagar, controlar a flutuabilidade só com os pulmões.
Queria estar ali.
Ver a lua outra vez na volta, descoberta, sem vergonha e ser noite cheia outra vez.

terça-feira, setembro 28, 2010

Diz que disse 40

Ao jantar, conversamos os 4 sobre o dia de cada um (leia-se, sobre o dia deles que nós não temos grande direito de antena).
Num ataque – frequente – à lá Roberto Begnini de “I Love you all”, o Digos começa a dissertar que ama muito a mãe, e o pai e a mana, e os avós e os amigos.
Nós rimo-nos e retribuímos.
E ele: “E vou casar com a mãe a com a Pim.”
E nós rimo-nos.
E ele: “E vou casar com o pai”
E a Pim muito depressa: “Não podes Digos. Não podes casar com o pai que o pai é menino.”
E ele: “Posso posso.”
E ela: “Não podes não. Só os gays é que podem.”
Todos:(......)
Eu: “Gays? O que são os gays, Pim?”
Ela: “São meninos que casam com outros meninos.”
Eu: “OK Pim” como se me tivesse contado algo completamente novo que só ela sabia.
E o jantar prosseguiu na paz do senhor, com mais conversas e histórias.

(Por muito que não olhe para o calendário, há certas e determinadas coisas que me relembram o ano em que vivemos, a época em que vivemos e as mudanças do mundo à nossa volta.)

Diz que disse 39

Não são raras as vezes em que, em vez de infernizarem a vida um ao outro e consequentemente aos pais, o Digos e a Pim brincam juntos sem incidentes de maior.
Ontem, escondiam-se à vez. A dada altura passo no quarto e lá está ele: braço à frente dos olhos, encostado à parede, ainda nem um metro de gente a gritar alto e bom som:
Ele: “um… dois… três… quatro… seis…”
Eu: Oh Digos… quatro… cin…
Ele: “cinco”
Eu: “seis”
Ele: “seis”
Eu: “mais…”
Ele: “(....) outro”
Acho que ainda é cedo para dizer mas parece-me que números não é com ele.

Diz que disse 38

De manhã, no carro à ida para a escola, a Pim conta uma história ao irmão. Um príncipe e uma princesa (quase sempre elenco residente) vão passear e mais não sei quê e de mãos dadas e são namorados e depois:
“… e então vão para fazer sexo.”
Eu: “vão fazer o quê Pim?” – com o ar mais entediado do mundo como se a nobreza tivesse decidido ir jogar cricket.
Ela: “vão fazer sexo pai. Não sabes o que é?”
Eu: “não estou a ver… é o quê?”
Ela: “é quando o menino e a menina tiram a roupa e vão namorar.”
Eu: “ah pois é…”
Ela: “já te lembras?”
Eu: “já filha, já me lembro”
E a história lá continuou noutro cenário, noutro contexto e desta vez, para menores de 18.

quarta-feira, setembro 15, 2010

Contido




Flor no chão à luz da lua
Tremida, vendida, cortada, rasgada

Sonhas em segredo
Conténs o sorriso
Os olhos escondidos e a boca fechada
Não falas, não gritas, não dizes nada.

Não me olhas nos olhos com medo de ti e mastigas os dias em silêncio.

Escondes a paixão que não sabes explicar
Sobes ao alto, pico de loucura.
Ouves os pássaros de manhã num piar constante. És um mutante que ama e detesta. Que agrada e contesta, que vai e não vem.

Viras uma folha. Duas. Três.
E vais. Arrastada pelas horas que não sentes. Pelas palavras guardadas entre dentes. Pela língua que não soltas porque não sabes dizer.
Desejas; tens medo.
Sublinhas o bater do coração com uma caneta grossa que se veja. Que tu vejas. Que saibas que és tu quem vive por dentro.
Pegas fogo em ti e não te esqueces. Não me esqueces. Não me apagas num dia, numa vida.

Não te apagas num sopro.
Mas demoras.


Acordas e em silêncio ouves a noite respirar. Acordas no exacto momento em que não querias acordar.
Era perfeito esse sonho. Era perfeito o momento... e o sentimento.

terça-feira, setembro 07, 2010

Diz que disse 37

Na escola, uma auxiliar ia apontando para a cara e perguntando:
- O que é isto?
- A boca.
- E isto?
- As orelhas.
Então apontou para as pálpebras.
- E isto Digos, o que é?
- (…) Isso… isso é uma parte dos olhos
- Uma “parte” dos olhos?
- Sim. É normal que os olhos tenham partes.

quinta-feira, setembro 02, 2010

Diz que disse 36

Ao jantar, já não me lembro a propósito de quê, a Pim dispara:
- Mas mãe, isso não é apropriado!
Pára tudo. A minha Pim tem 6 anos e “apropriado”, não sendo palavra de uso exclusivo em defesa de tese, também não é muito comum numa criança de 6 anos.
- Tens razão Pim, não é. Mas diz-me: por acaso sabes o que é que quer dizer “apropriado”?
Riu-se algo timidamente e respondeu:
- por acaso até sei – com ar respondão e muito senhora de si.
- e então o que é que quer dizer?
- Oh… quer dizer… quando uma coisa… quando é… quando não é…
E eu a pensar: já te apanhei….
E ela:
- Uma coisa não é apropriada quando não é (pausa dramática) adequada.
E depois explicou à sua maneira mas bem, o que significava “apropriado” ou “adequado”.
Respondi: perfeito filha - e mais não consegui.
E pareceu-me que ficar orgulhosamente calado era o que de mais adequado poderia ter feito.

segunda-feira, agosto 30, 2010

Diz que disse 35

Porque podiam, a Pim e o Digos estiveram 4 semanas fora de casa. Duas connosco e mais duas com os avós.
Chegámos ontem ao final da tarde e naturalmente, as saudades dos brinquedos, dos livros e até do espaço, deram-nos uma boa hora e meia de "quase" paz.
Enquanto estávamos na cozinha a beber um café, passa o Digos com um ar muito decidido. Caixa das ferramentas debaixo de um braço e uma mala com brinquedos na outra mão.
- onde é que vais Digos?
- vou pôr isto à porta.
- para quê filho?
- para não me esquecer.
- não te esqueceres de quê?
- de levar isto para a casa do Alentejo quando for de férias.
- (...)
Não é fácil explicar a uma criança de 3 anos que as férias acabaram e que ainda falta "um bocadinho" até chegarem novamente. Mas explicámos e ele, rendido, lá agarrou nas suas coisas e foi arrumar no quarto.

Não se equaliza a paixão




Já não tenho a dificuldade inicial quando monto o equipamento. Manómetros e traqueia pela esquerda, regulador e auxiliar à direita.
Abro a garrafa, verifico tudo, analiso o ar e do que é composto e volto a fechar.
Tudo para o barco e vamos.
É sempre a parte mais dura. Não se faz nada a não ser encher o tempo com conversa mas quando se chega ao sítio certo é ver quem prepara tudo mais depressa. Verificações repetidas por segurança. O meu equipamento e o de quem me acompanha. E então começa.
De costas para a água, uma cambalhota e por fim o O.K. final. Está tudo bem? Estamos todos? Vamos embora para baixo.
E o ir para baixo é o princípio de tudo. Basta meio metro. Meio metro apenas e já estamos lá. Já não tiramos o regulador da boca nem por nada. Quero descer.
Vou tirando ar ao colete e lentamente afasto-me da superfície. Um olho na pressão da garrafa, outro no profundímetro e continuamos. Metro a metro, mais coisa menos coisa paro. Os ouvidos dão sinal e equalizo. Equilibro pressões que o corpo pede.
Quanto mais desço mais quero descer.
Cinco metros, seis, sete. Isto não é nada. Hoje vamos aos 30. Nova paragem; aperto o nariz, olho para cima e faço força. Estalou. ‘tá bom. Desço e desço. Olho para quem me rodeia. Está tudo bem? Está Manuel. Sim, os ouvidos estão bons. O Pedro olha para mim. Estás bem? Faço sinal que sim. Desta vez a máscara já não embacia. Desta vez a máscara está colada a mim e nem uma gota de água me distrai. Nada.
Dezoito metros. A partir daqui é tudo novo. Vinte.
Paro. Subo um bocadinho; equalizo e desço novamente.
Respiro fundo. 3 ou 4 vezes bem fundo. Fico mais calmo. Controlo melhor a respiração. A flutuabilidade e os meus movimentos. Quanto mais calmo, melhor. Não há pressas e não tenho medo nenhum. Se alguma coisa correr mal, alguém me há-de dar ar. Mas não corre.
À nossa volta está muita gente que não vejo. Sei que estão lá porque vimos os barcos. Somos muitos os que se apaixonaram por isto. É muita gente.
Mas lá em baixo, somos só nós. O Manuel, o Pedro, a Ana e eu.
Paramos. À nossa frente, um monte de ferro transformado em recife. Mal se percebe ao princípio o que é isto. Mas depois parece que tudo começa a ganhar forma. Está deitado a descansar este cargueiro que se partiu aqui há 21 anos. Dezanove dos 45 tripulantes ficaram lá. Mergulharam com ele. Morreram ali.
É um local sagrado este.
E belo. Ergue-se do fundo. Faz parte do fundo.
Num dos lados, um enorme rasgão deixa perceber o interior do barco. É grande. É enorme. Mesmo partido o River Gurara não se mostra todo. Mais tarde voltamos para o segundo mergulho. À vez, espreitamos. O Manuel passa-nos a lanterna e quando sou eu pergunto se posso entrar. Um bocadinho, diz-me por sinais. A curiosidade é mais forte que o medo. Há ferros a toda a volta. Numa fenda que parecia tremenda mal me descuido e dou com a cabeça em qualquer lado. Procuro um sítio onde me apoiar. Encontro. Respiro. Não percebo mas estou 4 metros para dentro na barriga do monstro. Lá de fora – dizem-me depois – não me viam. Não percebi. Perdi-me com a lanterna a descobrir caminhos impossíveis de fazer de estreitos. São dezenas de metros para lá de onde não passo. Cabos, peças de navio. Desfaz-se nas luvas este bicho que já teve 175 metros de comprido.
Ali, estático, nem penso na respiração, na flutuabilidade, em nada. Estou a ver. Estou quieto.
Um toque no ombro. Tenho que sair? O.K.
Quanto de ar? 80, 70. Quem tem menos manda. Ainda damos uma volta pelo leme e pelo hélice. É tudo grande. Mas pequeno comparado com o que sinto.
Era capaz de estar horas a fio lá em baixo. Não me canso. Toco nos peixes que nadam à nossa volta. Apanho as pedras que prometi levar e disparamos a máquina, quase sem perceber, 160 vezes. E houve bonecos engraçados.
Não respires agora por causa das bolhas. Sorrio e sustenho a respiração. Já está.
Quero voltar aqui.
Quero voltar aqui; voltar à água. Quero pousar nas rochas devagar. Ver os peixes, as anémonas e os pequenos corais. Quero ver este barco afundado outra vez.
Respirar devagar, perder-me com os olhos. Subir meio metro, descer meio metro. Controlar o meu corpo no espaço.
Quero voltar porque estou apaixonado e o que sinto, por norma, dificilmente consigo equalizar.

quarta-feira, agosto 25, 2010

No Fundo




Falta-me ver tudo. Mergulhar no mar da lua. Perceber as incongruências da idade. Desejar e ter. Querer e fazer.
Ter à mão só porque sim. Dar-te um beijo. Estar assim.
Ser lua cheia todos os dias. Chorar os arrependimentos todos de uma vez. Descobrir a cura sem ir à loucura.
Não perder ninguém devagar. Não olhar.
Guardar para mim as memórias bem vivas. Jogar à bola outra vez contigo em Belém. Ir ao cinema de mão dada.
Ligar só para perguntar. Ouvir-te rir como dantes.
Não fiz nada e queria mostrar-te tudo. Sentir na tua voz o entusiasmo de sempre. Sentir-me forte e capaz. Ficar mudo de espanto por te ouvir contar histórias. Ser outra vez criança. Sentir o teu abraço apertado. Sentir a tua força. Ser mais como tu.
Queria que os meus filhos te vissem fazer coisas com as mãos. Desmontar qualquer coisa com milhões de parafusos e peças soltas. Chamar as ferramentas todas pelos nomes.
Deixá-los contigo uma tarde.
Uma e outra vez não consigo. E por mais que queira, o tu que eras não pode estar comigo. Por mais que quisesse evitar, por mais que te quisesse curar, por mais que não quisesse chorar, dou por mim sentado a escrever lágrimas no papel.
Por mais que te agarre, por mais que te puxe, por mais que queiras já não me olhas no olhos e eu precisava disso. De te ouvir ao olhar para mim. Do tanto que eras capaz de dizer num abraço apertado.
Sinto tanto a tua falta.
Fumo um maço numa noite e ainda não fiz nada.
Sábado vou mergulhar. Para os miúdos vou trazer uma pedra a cada um apanhada a trinta metros e a ti mostro-te as fotografias que tirar no fundo. Hás-de ver o azul pelo menos. O azul do mar.
Se calhar não percebes que sou eu no meio de tubos, máscaras e sei lá que mais mas sou eu pai. Estás a ver aqui? Sou eu lá em baixo.
E enquanto souberes que eu sou eu fico feliz.

quarta-feira, agosto 11, 2010

Coisas Simples




Estou encostado, meio deitado num cadeirão insuflável que mal se mantém amparado.
Balanço ao som da rega. Ora para cá, ora para lá.
Por cima, a mesma companhia de ontem e dos outros dias todos.
Os pés nus vão sendo compassadamente molhados pelos restos colaterais que os aspersores libertam (apesar de cuidadosamente alinhados).
O Alentejo continua quente – mesmo a esta hora - e o dia de amanhã promete ser febril.
As crianças dormem. Estão cansadas e quando chegam à cama a vontade de continuar as conversas é rapidamente anulada pelo sono.

Lá dentro, por detrás de um laranja vivo num tecido leve, esperam-me mais umas horas de conversa. Mais um entrelaçar de pés no sofá enquanto os personagens de um filme qualquer contam uma história.
Cá fora, encostado, meio deitado, debito mais uma ideia. Sobre as coisas simples que me deixam feliz. Como os pés molhados.

Fumo mais um cigarro.
Perco-me na moldura amarela da janela.
Fecho os olhos no escuro à procura de uma estrela. Quero vê-la.

Não quero notícias nem novidades. Não quero saber de meias verdades. Não quero saber.

A cadência ritmada e este tac-tac-tac deixam-me as ideias claras. Ponho de parte as palavras caras. Quero o mais simples das coisas simples. Quero os pés molhados, uma e outra vez. Até que o jardim se sinta saciado. Até que o calor seja abafado. Até que a noite se entregue toda. Até amanhã.

terça-feira, agosto 10, 2010

sempre igual




Não muda o cenário que me envolve quando escrevo.
É quase sempre a noite que me mexe.
Quase sempre a estrela que não esquece.

É a memória das horas cheias que se entornam pelos dias.
Dos risos, das palavras e das alegrias.

Do lume que se fez forte; do tempo que não tem norte.
Da aragem solta que me leva o fumo.
Dos grilos longe que marcam o compasso.
Dos amores mais sólidos que o aço.

Das crianças aos gritos no jardim. Dos mergulhos do Digos e da Pim.
Dos amigos a correr; do saber sem saber que fazem hoje o que serão depois.
Que amanhã quando o sol nascer e quando abrirem os olhos, tudo o que vão ver é um sorriso largo. É um bom dia cheio de saudades.
É um abraço, um beijo e os planos das horas cheias de novidades.

À minha volta estou só eu. Na minha volta não estou só.
Uma sebe mal aparada não conta que só se acerta no Outono ou na primavera. E agora é verão e não posso agarrar na tesoura só porque a estética botânica diz que sim. Não posso e é assim.

Obedeço a estas regras naturais. Trato da relva que ouço crescer nos dias mais longos.
Estendo os dias ao sol e escolho a molas melhores.
Não por serem a mais fortes mas por serem as maiores.

Desenho as palavras que me peço. Escrevo o que quero e o que não esqueço.
Desdenho os escritores maiores. Pela lucidez, pelo que se impuseram, pelo talento.
Pelas regras que seguiram no seu tempo. Pelo tempo que ganharam na escrita que nos deram. Pela capacidade absoluta de dizer tudo o que sentiam.

Desdenho e admiro os escritores maiores. Por não ser capaz de o fazer. Por não ter pretensões e só prazer.
Pelo gozo que tiro quando uma frase sai bem. Pelo bem que me faz sem ter que o fazer a mais alguém.

E por ser tão complicado, tão intrinsecamente rebuscado; por ser tudo quase nada. escrevo isto numa penada, fecho o texto e vou para dentro.

quarta-feira, agosto 04, 2010

Diz que disse 34

O Digos adora o avô e ficou todo contente quando lhe dissemos que depois das férias ainda teria mais uma semana com o avô.
À saida, agarra-se a ele, abraça-o e diz-lhe com ar solene:
- Até Greve.

A ver se me ponho a pau não se junte o bicho à irmã e formem um sindicato.

terça-feira, agosto 03, 2010

O Escafandro e a Borboleta



As férias têm destas coisas. Deixam-nos à mercê dos dias e nós, de férias, deixamo-nos ir. Sem horários, sem pressa para coisa nenhuma – a não ser para chegar à praia antes das 9 e meia. Tudo o resto tem tempo.
E como tudo o resto para além do que tem tempo, continua, ligo o rádio de manhã só para saber o que é que o resto do mundo anda a fazer. Regra geral, 3 notícias chegam. São as grandes parangonas do dia e repetidas à exaustão de meia em meia hora não me vão trazer nada de novo para além da primeira vez em que as ouço.
Mas hoje, hoje foi diferente. Hoje as notícias que trazia o éter não me deixaram indiferente.
A semana passada foi o António Feio. Hoje, Mário Bettencourt Resendes. E se a semana passada foi a morte de um actor que me habituei a ver na televisão e no teatro e com quem estive uma vez apenas, hoje foi diferente. Hoje foi um professor de faculdade. Daqueles por quem se ganha um tremendo respeito pela sapiência infinita e generosidade na distribuição de saber. Hoje foi o professor de faculdade por quem – acredito – todos os seus alunos ganharam admiração e respeito.
Durante um ano, foi meu professor e durante um ano, todas as aulas foram plenas de sabedoria, de experiência e de uma tremenda simpatia.
Se calhar por nunca ter sido um aluno espantoso – longe disso – não foram muitos os professores que guardo da minha vida académica. Da secundária, um único com quem me cruzei há pouco tempo na rede. Da faculdade, meia dúzia e desses, 3 que guardo com enorme apreço e carinho. O Mário Bettencourt Resendes era um desses.
E mais uma vez, doença sinistra que bate à porta e mais uma vez, a sabedoria de uma vida não foi capaz de a ludibriar.
Ao homem e ao professor digo adeus. A tudo o resto,
Lá em casa, numa prateleira, repousa um livro que comprei quando mo indicou. “O Escafandro e a Borboleta”. Fala de um homem que no pico da sua carreira sofreu um acidente vascular cerebral paralisando-o por completo com excepção do olho esquerdo e do cérebro. Foi o suficiente para letra a letra escrever o livro em questão. Um livro autobiográfico carregado de esperança e de perseverança.
Ao escrever isto, sinto-me como um jornalista à antiga em início de carreira. Ao que parece, quem entrava fresquinho numa redacção de qualquer pasquim tinha a dolorosa tarefa de fazer a ronda pelos hospitais, policia e bombeiros para saber as desgraças. E quando graves, reportar os óbitos.
Quem me contou foi o Professor Mário Bettencourt Resendes e tal como aos jovens jornalistas, de vez em quando a notícia que reportavam tocava-lhes mais fundo.
Adeus professor. E obrigado.

sexta-feira, julho 30, 2010

Pos-packshot




Há uma tendência natural para endeusar os mortos. Porque depois de nos finarmos, não fazemos mal a ninguém e fomos todos tão bons moços e simpáticos e sem nada a apontar e os uns heróis e em suma, os maiores.
Há uma tendência que no fundo não passa de uma grande balela – para não dizer, uma hipocrisia de merda. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra.
Morreu António Feio. Actor, encenador, comediante, professor e antes de tudo isto, um homem persistente com uma graça natural do caraças.
Conheci – porque cresci com eles – os personagens que levou à cena. Os bonecos quase todos. Da Vila Faia ao Tóni foram muitos. Da televisão ao Teatro, do cinema ao stand-up. Nunca privei com o homem mas uma vez estive com ele uma manhã em estúdio para a gravação de um spot qualquer. E quem conheci nesse dia foi um tipo simples com ar simpático e cheio de histórias.
Eu, que não sou gajo para ficar calado, lá lhe fui perguntando sobre peças que tinha visto, reacções, surpresas.
Conversa boa e desprendida.
E depois começou a falar de coisas que queria fazer, que tinha visto em Londres uma peça e que a gostava de trazer para Portugal. Ah sim? O quê? É uma coisa dos Monty Python. Se na altura houvesse facebook e um botão em rodapé no discurso de cada um de nós, tinha disparado logo um Like.
Falámos mais um bocado. Entrámos em estúdio, gravou o que tinha a gravar, aperto de mão e um Obrigado. Meu e dele.
E foi isto.
Não faço juízos de valor nem de carácter. Não tenho carta para isso e não é 1 hora e meia que faz a vida de um gajo.
Gostava do actor. Gostava dos bonecos.
E sorte filha da puta, teve o azar de abrir a porta a uma doença que conheço bem demais. Não é justo para ninguém e muito menos para quem nos faz rir.

quarta-feira, julho 21, 2010

The Moment




Postponing dreams for far too long
Sending messages all night long
Writing notes on small post-its
Compiling this shit with big Paper clips

Shout out loud
Stare at the Sun
Scream from my heart
Become blind, deaf and dumb

Stare at the sky
Cry at the stars
Howl at the moon
Travel to mars

Stop what I’m doin’
Shut myself down
Find the whole truth
Make a hole in the ground

Listen to the song
Ought to be a better man
But like this, I’m cover
Pretending to be Pearl Jam

Nothing beats the real thing
There’s something about purity that makes great things look even greater. Perfect moments, divine; and heavenly thoughts, demonical.
It’s all about right and wrong, truth and deception. Deceiving you. And no one can beat that.
Be independent but depend on someone’s feelings. Don’t find yourself faking what was supposed to be real.
Take a moment before you die ‘cause to death, you just can’t lie.
Regardless of the mix emotions that tumble in your heart, you’re the first that doesn’t deserve to be in it just for a small part.
Take the whole and make your day. Find the light, come what may.
Step off the rope. It’s way to high.
If you fall from up above, you will die, you will die. And you’re way to beautiful and stunning and smart to be caught in a lie.

Find comfort and calmness
Find peace with yourself
Look straight in your eyes
‘Cause there can be no one else.
It’s you and you alone
It’s better before it’s gone
Fix it and when you’re done
You’ll see that there can be only one.

segunda-feira, julho 12, 2010

Original Sound Track (e um Diz que disse: o 33 desta vez)



Como todos os anos desde há uns anos, os avós ficam uma semana com as crianças no verão. É bom para eles – para os avós – para os miúdos e vá, um bocadinho para nós. É uma semana diferente para todos.
Para os avós, que podem ser os pais que queriam ter sido mas que as obrigações de um pai não deixam mas as de um avô permitem. Para eles, que não estão na escola e que vão à praia de manhã até poderem e à tarde até ser noite, tomam banho de mangueira no jardim e deitam-se tarde depois de um passeio ao café da vila ou de actividades várias como pintar pedrinhas. E para nós, que dá para sair do escritório às 9 e meia da noite e decidir na hora onde ir jantar e fazer disso um momento a 2 onde se pode conversar sobre coisas de crescidos. Dá para ir ao cinema (momento quase solene) e para estar com alguns amigos noite dentro. E dá para ter saudades, sentir a falta e desejar que a semana passe depressa para os poder abraçar outra vez.
Um dia destes ao telefone, depois da minha “drama queen” me dizer que tinha muitas saudades, veio o príncipe e com uma voz solene, tom sério e pouco volume, diz-me:
- Pai, eu quero ir viver contigo.
- Mas tu vives com o pai, filho. Não tarda nada vamos aí buscar-vos.
- Mas eu quero viver contigo todos os dias.
São 3 anos que não conhecem bem as palavras todas e saudades, são uma coisa vaga e de difícil descrição.
- Eu também quero filho. Vais ver que estes dias passam num instante. Olha, diz ao pai, tens dado muitos mergulhos?
A conversa virou e passou o tema.
Mas ficou a frase; ficaram as saudades e os dias que demoram a passar.
Houve muito silêncio cá em casa por estes dias. Não houve fitas nem birras.
Mas também não houve corridas pelo corredor, bolas a bater nas paredes. Não se ouviram as pedras de lego uma única vez nem “mãe, a mana bateu-me”, “pai, o mano tirou-me um brinquedo e não pediu se faz favor”.
E essa banda sonora dos meus dias fazia-me falta.
Hoje, estou outra vez completo e o CD dos meus dias já se fartou de tocar.

terça-feira, julho 06, 2010

El secreto de sus ojos




Eu sabia que os olhos falavam. Que me abriam os portões da alma e me diziam tudo o que não queriam. Que me seduziam, me apaixonavam, me inebriavam e me odiavam. Eu sabia que os olhos falavam mas nunca me ocorreu que guardassem segredos. Coisas simples de amar e de amar. De amor. Histórias guardadas no mais escuro dos retratos, no mais empoeirado dos álbuns da prateleira mais alta. Mas guardavam. Histórias como a que Juan José Campanella conta. Uma história simples em 2 horas de obsessão, paixão, um amor mudo, uma amizade surda e um humor mordaz, inteligente e impulsivo.
Uma história sobre o que os olhos dizem sem nada dizer. Uma história de um amor que vence o tempo e de uma vida carregada num castigo de ser cheia de nada. Uma história que faz de um crime hediondo a razão para se escrever sobre o quanto ama este herói.
Que grande filme. Que grande história. Que bom acabar a noite assim.

sexta-feira, junho 25, 2010

Chegou o Verão no calendário.



Chegou o Verão no calendário.
Trouxe novas nuvens sob o mesmo sol. Um calor bom e um barco no fundo do mar.
Trouxe os incêndios que ardem nos dias de sempre e queimam os olhos com o fumo quente.
Chegou o Verão do futebol. Da selecção de todos nós em que ninguém acreditava. Do futebol espectáculo da América do sul. Do pragmatismo da Europa central, das surpresas africanas e das desilusões e vergonhas gaulesas e italianas.
Chegou o Verão com o mar vermelho pintado de negro e de “amarelo-crise” o mediterrâneo. Das praias cheias de gringos e sem chumbo 95.
Chegou o Verão dos dias mais longos. Do sol até mais tarde. Da lua até mais não.
Chegou o Verão da roupa fresca de linho em casa, da água fresca no corpo; dos banho de água fria; da água.
Chegou o Verão da cabeça quente. Das discussões suadas pela manhã. Das ideias parvas. Dos almoços adiados na esplanada frente ao mar. Dos barcos no rio sem vento p’ra andar.
Chegou o Verão das saudades de casa. Das tardes na relva e da sardinhada.
Chegou o Verão de parar um bocado. Das férias mais perto e do tempo adiado.
De aproveitar para almoçar demoradamente, beber 2 copos de sol, comer 2 nacos de tempo e esperar que chegue a noite. Sempre.
Chegou o Verão de encontrar espaço para quem se gosta. De perguntar porquê mesmo que não haja resposta.
Chegou o Verão há 4 dias mas estamos mais moles e mais moles é mais lentos e se me desse na cabeça, era capaz de escrever isto lá para Setembro.
Depois do Verão, verão que nada mudou.

quinta-feira, junho 17, 2010

Do que passou a correr




Do acordar antes da hora que o corpo quer. Do despertar à força. De abrir os olhos com os dedos porque de outra maneira, fecham-se num sonho qualquer.
Do entrar no duche ainda a dormir e sair ainda mal acordado. Do me arrepender cada dia das horas perdidas que deveriam ser passadas na cama.
Dos beijos que se dão de manhã. Das festas e cócegas. Do passar a mão pelos cabelos dela. Do enrolar os dedos nos caracóis dele.
Do sentir novo de a deixar sair debaixo da asa. Do sentir saudades ainda com ela à vista. Do deixar ir por uns dias.
Do sol que lhe sabe bem. Do quanto sei que vai rir.
Do que ele gosta da praia. Do que ele corre na praia.
Do voltar atrás. Do pequeno almoço à pressa fora de horas.
De uma manhã perdida na estrada. De uma tarde perdida em nada. Dos sorrisos.
Do pensar no 28, na volta que dá e no que alguém vai descobrir amanhã.
De uma Masterclass que foi uma feira de vaidades. Da ausência de conteúdo e de novidades.
Dos amores que não se vê um dia inteiro. De uma voz que não se ouvia há muito.
Das saudades da Pim que me faz falta ver. Das saudades do Digos que quando chegar vai estar a dormir.
Das histórias escabrosas sem planeamento. Da ausência de estratégia.
Do bater na mesma tecla. Do jantar ao frio sem sair do lugar.
Das pessoas que não se vêm todos os dias mas que sabe bem ouvir. De rir.
De falar no mesmo grupo 3 línguas diferentes. De fazer o frete porque tem que ser.
De ir a correr.
Dos caprichos.
De uma viagem de metro por duas estações. De Lisboa à noite sem distracções.
Dos beijos que faltam e que já não vou ter. De olhar para ele mais tempo e mais tempo. De lhe fazer festas até quase acordar. De lhe dar beijos sem som mais beijos e beijos.
Da vontade que tinha de aqui vir escrever.
Do Manuel João no Maxime a cantar. Do Miguel Guilherme a sair para jantar.
De pensar que amanhã poderá ser melhor.

De chegar a casa sem ter feito nada.
Do que o dia foi feito desde a noite passada.

segunda-feira, junho 07, 2010

Um olho em Londres




Pelos passeios rampeados é mais fácil levar o carrinho de bebé e é mais fácil levar o carrinho de bebé quando se anda com 2 miúdos. Ela com 6, ele com 3. É verdade que se o carrinho fosse maior até o sénior lá tinha andado mas assim, alternava entre “agora sou eu” e “a mana vai sempre no carrinho” depois dele lá ter passado meia manhã, uma sesta, uma maçã e meio litro de água.
Passámos 4 dias de rua, ou melhor, 3 de rua e um de Legoland. Mas a rua foi melhor – para os crescidos pelo menos que quando os mais pequenos tiverem m blog escreverão sobre o que quiserem.
Passámos 3 dias de ponta a ponta da cidade que conhecemos mas que nunca se conhece bem. Do London Eye a Notting Hill, de Convent Garden a Kensignton Gardens.
Tudo de manhã à noite. Tudo, ou quase quase tudo a pé.
E mesmo com as trocas e as reclamações quanto à posse do carrinho, os meus filhos são os melhores companheiros de viagem do mundo. Cansados, fartos de andar, basta um jardim para repor os níveis de energia.
Para mim, fica a nova velha cidade de sempre. As novas velhas culturas. As novas velhas pessoas. As ruas que não mudam.
Fica Portobello Road com o mercado de Sábado de manhã e Convent Garden com milhões de pessoas Sábado à tarde. Fica a vontade de olhar para tudo vezes sem conta porque à segunda, há uma segunda visão sobre o mesmo olhar.
Há sempre mais. Mais diferenças, mais ruas, mais becos, mais carros, mais pessoas.
Há sempre mais.
Há uma insuspeita quinta-feira à noite com danças de salão num segundo andar. Mesmo em frente ao hotel. Mesmo em frente aos meus olhos. E consigo ver como as mãos deles seguram o par sem lhes tocar deliberadamente. É tango aquilo que se ouve. É música com sexo nas cordas da guitarra, nos acordes do piano e ainda assim. Não se tocam mais que a conta. Não se tocam mais que o tango. Que é muito menos que aquelas duas miúdas que pelos beijos, não se viam há mais um mês. Aquilo é beijos e abraços para mais de um mês. Aquelas mãos entrelaçadas não se tocavam há mais de um mês e quando passam por mim Ainda ouço: how was your flight?
Não sei se era do voo que a trouxe se do voo para os braços uma da outra.
Do outra lado do passeio 3 casais com filhos pela mão. Uma corredora que nos atravessa a todos em direcção a Hyde Park e um inevitável Fox Terrier que faz sempre lembrar um aspirador quando anda com o nariz no chão.
E ainda não acabei um cigarro.
Passamos pela rua manhosa antes de Notting Hill Gate e o cheiro a chicha que sai dos narguilés faz com que o Digos e Pim virem a cabeça. Isto cheira a qualquer coisa. Pois cheira. Vá. Olhem para a frente e sigam. E seguimos.
São 9 da noite. Os 27 graus dizem-nos que estamos noutro lado qualquer que não na cidade onde só choveu para nos dizer adeus. Parece que os ingleses descobriram agora as havaianas. É uma invasão de chinelo no pé e vestidos curtos que de certeza que estamos noutro lado. Afinal não. As cabines telefónicas e os táxis denunciam-na. É Londres mesmo.
Onde não cabe mais gente em lado nenhum mas há sempre uma “table for six”.
Seja no Nando’s, no Grill ou no Zizzi onde a Sandra, espanhola retinta me serviu uma Mela Crocante que passou à segunda colher a ser a melhor sobremesa do mundo.
Cabiam mais linhas aqui como mais olhares sobre a cidade. Como mais pessoas nas ruas, no metro ou lá em baixo.

segunda-feira, maio 31, 2010

Diz que disse 32

Sábado foi dia de Festa de Final de Ano do colégio.
Ele, uma flor que diria carnívora a julgar pela posição meio "dread" em que colocava as mãos quando dançava.
Ela, uma borboleta que dançou como se não houvesse amanhã. E por ter dançado bem e ter sido uma borboleta linda - e porque há pais simpáticos no colégios dos meus filhos - no fim da festa, foram vários os elogios: "estavas tão linda Pim"; "dançaste tão bem"; "que linda borboleta". Meio envergonhada lá ia agradecendo os elogios.
Já à saída, cruzamo-nos com mais um pai: "Oh Pim, tu dançaste muito bem, cheia de ritmo. Eras uma linda borboleta."
O "obrigada" da praxe, sorriso de circunstância e um desabafo: "isto agora vai ser sempre assim?".
Acho que a minha estrela não lida bem com os admiradores.

sábado, maio 22, 2010

Deep blue state of mind



À direita, escarpas que desenham inclinadas as paredes deste mundo. À esquerda, o horizonte. E por baixo de mim, um estado de alma de um profundo azul para onde mergulho.
Não é a pressão das 2 atmosferas que me esmaga. É o silêncio.
Não é a vida marinha que me surpreende. É poder tocar ao de leve numa anémona e vê-la fechar-se.
Não é o fato que me aquece. É o sol que desce para lá da tona de água.
Estou numa narcose consciente, numa dormência sensorial que me torna uno com a água, na água.
É uma experiência de vida. O som, a luz.
Mas hoje, a primeira vez. Descer ao que parece ser o fundo e perceber que ali ao lado ainda se pode descer mais e mais. Descer mais um pouco.
Ajoelhar-me nas rochas cobertas de algas, tocar nos peixes que me rodeiam e respirar. Respirar fundo, com calma. Mover-me devagar. Subir, equalizar e voltar a descer. Equalizar outra vez para os ouvidos deixarem de estalar.
E o sol que muito lá em cima – muito mais que o normal – ilumina o fundo do mar.
Perdi-me atrás de um peixe sem sair do sítio. Perdi-me no tempo que estive lá em baixo e foi muito menos do que queria ter estado. Amanhã há mais e ainda mais profundo.
E eu, num estado de alma de um profundo azul que me esmaga, me surpreende e me aquece.

domingo, maio 16, 2010

a minha TEDx perience




Fui ontem assistir ao TEDx que, para quem não sabe, não é mais que uma versão local das TED Conferences. (para saber mais, aqui e aqui)
E de facto foi uma experiência. Quem costuma assistir às TED talks ou às conferências – ao vivo ou na net – saiu decerto com um sentimento de….. poucochinho.
E com isto não estou a dizer que foi mau. Não foi. Mas podia ter sido tão melhor.
Quem esteve ontem no Auditório pôde ver coisas interessantes e outras nem por isso.
Mas vamos por partes.
O tema da TEDx Lisboa era “Um dia com mentes abertas” e dividia-se depois em 4 sub-temas: “à descoberta”, “à acção”, “à mudança” e “à sabedoria”.
Em cada bloco, 6 oradores e uma performance musical (excepto no da sabedoria – estaremos com uma crise de sábios?).
Para mim, o TED é aquele ponto de encontro de ideias e não é por acaso que assina com “ideas worth spreading”. É o local – virtual para quem não pode lá ir – onde há descoberta. Um repositório de pessoas diferentes que tanto podem discorrer sobre como mudar o mundo através dos jogos on-line como ver John Hodgman (o PC das campanhas Apple) numa cómica intervenção sobre como não estamos sozinhos no universo e como foi em Portugal que ele percebeu isso numas férias no Algarve.
No TED há de tudo mas na maior parte das vezes, há ideias. E ontem foi isso que falhou nalgumas intervenções.
O modelo é simples. No tempo do lusco-fusco, pouco mais, um orador e uma ideia que vale a pena espalhar.
E no TEDx Lisboa houve ideias mas também houve ausência das mesmas. Houve ideias sobre tecnologia, monitorização e tratamento de informação em tempo real. Houve ideias sobre como podemos politicamente ser mais interventivos. Houve partilha de intenções. De integrar o conceito das bibliotecas itinerantes num registo “prosumer” (PROducers and conSUMERs of information) onde se partilham a literatura existente com o registo das nossas histórias (storytelling… é procurar no YouTube). Houve divulgação de projectos interessantes (com ideias subjacentes, alguns, e outros nem por isso) como um edifício na Ilha do Fogo em Cabo Verde ou a possível presença portuguesa na Antárctida. Houve momentos altos como a de um ex-autarca que explicou como se faz bem e que teve uma ovação de pé. Houve explicações sobre genética, sobre o ensino, sobre tendências e sobre design.
Houve António Barreto e toda a sabedoria dos números, da estatística e de como trabalhar em cima deles e houve lições de vida, como a que nos falou do Dhaka Project. Esmagador. Mais uma ovação de pé para um trabalho notável de uma miúda de 32 anos.
Houve música, como já disse, com projectos bem interessantes. Não conhecia nenhum e gostei de todos. Especialmente de Noiserv. Mas também de Natália Juskiewicz, de Rodrigo Viterbo e de Nome Comum.
E houve humor com Simão Rubim que é sempre bom, mordaz e assertivo e um fecho à laia de resumo do dia com João Cunha (segundo ele, membro da maior família de sucesso em Portugal, os “Cunhas”). Muito bom.
Pelo meio, uma data de actos falhados. Sem ideia, sem conteúdo, sem sentido. E isso terá eventualmente manchado o colectivo. Eventualmente.
E as ideias?
Houve algumas de facto, mas não o fartote que estava à espera. Queria ter saído de lá de cabeça cheia. Com novos pontos de vista. Com novas formas de abordar as questões. E disso houve pouco.
Mas a verdade é que gostei. Foi um cheirinho a TED que soube a pouco mas ainda assim, um cheirinho a TED.
Quanto à organização: imaculada. Os horários, o respeito pelas entradas e saídas, os mimos (como o almoço e os coffe-breaks) e a atenção de cada um da organização foram impressionantes e podia ver-se em cada um, o empenho e a vontade de ver tudo a correr bem.
Dizia-me um amigo – cáustico por natureza – que por €20 não se podia pedir mais. De facto. Não meço as coisas assim mas numa relação preço/qualidade ficou claramente muito em conta.
Para a próxima será melhor. E se puder, serei novamente um TEDxter.

terça-feira, maio 04, 2010

Ponto de Fuga




Quanto mais de mim poderei eu dar? Quão mais honesto saberei eu ser? Noite escura e não sei responder.
Quanto do tempo vou perder por não ter Espaço e quanto mais por querer saber?
O que é que faço?
Deito a cabeça por cima do braço. Colo-me a ti e somos um só de cansaço.
Emudeço. Ensurdeço. Anoitece depressa e sou eu quem escureço.
Vi há bocadinho um homem que tocava guitarra. Tirava sons deliciosos de 6 cordas. Imagino com 20, 30, 100. Imagino todo o som que aquela guitarra tem.
Imagino o que seria aquele génio à solta numa rua de Lisboa. O que seria o som que se ouve se estivesse numa praia. Sentado, a conversar. O mundo todo parado excepto o mar.
E eu e tu à conversa. Com o sol a bater, o quente a subir; numa mão um copo e na outra o desejo. Não é preciso dizer que eu vejo. Eu sinto. Vejo nos teus olhos o que queres que eu também quero e como tu, não minto.
Eu também o sinto.
E sento-me direito outra vez. Apago as luzes do mundo e escondo-me um segundo. Um minuto. Uma hora. Escondo-me de tudo o que me demora.
De tudo o que me afasta. Se me deixo ir, vou.
E é a tua mão que me arrasta.
Todos os dias, todas as noites. Não me dou descanso. Encosto-me às palavras e balanço.
E sem sair do lugar, embalado pelas noites, vemos a mesma lua e o mesmo mar.

terça-feira, abril 27, 2010

Diz que disse 31

ele na casa de banho. eu na cozinha.
ele: paaaaaaaaaiiiiii
eu: sim filho
ele: já fiz
eu: vou já
ele: paaaaaaaaaiiiiii
eu: já vou filho
(já na casa de banho)
eu: já está?
ele: já
eu: rabo no ar.
ele: tenho ranho.
eu: já te assoo
ele: tenho ranho
eu: oh Digos, ou te limpo o rabo, ou te assoo
ele: não tens 2 mãos?
eu: (....)

sexta-feira, abril 23, 2010

Tudo e Nada




Quanto se faz do que não se vê?
Quanto de nós parte nas palavras que ficam?
Quanto se entrega sem dar nada?

Quantas perguntas respondem?
Quanto respostas perguntam?
Quantos silêncios nos unem?
Quantos vazios nos preenchem?
Quantos gritos emudecem?
Quantas noites?

Quantos dias de chuva nos secam por dentro?
Quantas portas fechadas nos abrem os olhos?
Quantos olhos abertos nos deixam no escuro?
Quantas vidas?

Quantos momentos efémeros durarão para sempre?
Quantos sorrisos largos escondem um mar de lágrimas?
Tudo e nada.

Diz que disse 30

ele: pai, um dia ajudas-me a construir uma escada muito alta e muito grande até à lua?
ela (baixinho): eu também queria. levava para casa só uma noite e depois punha-a lá outra vez.
eu: (...)

domingo, abril 18, 2010

No fim do dia há uma________________________




No fim do dia há uma linha
Que nos separa o dia da noite e o quente do frio
O doce do amargo e o cheio do vazio
No fim do dia há uma linha que nos esmaga no peito as ideias.
Que nos faz querer devagar e nos agarra as palavras
Que não nos deixa avançar.
No fim do dia intransponível, inacessível.
Ao alcance de um beijo. De um querer que se quer. De um saber de saber bem que não se vai provar. De uma noite sem lua e de uma lua sem mar.
Bocejo e esbracejo e fumo um cigarro
Arrumo por ordem o dia fechado
Entre o vento que levanta árvores do chão e as ondas que saltam e que aperto na mão
Há uma linha que nos diz que sim e que não
Fecho os olhos e sinto e demoro acordado
As promessas de um sonho em que ao sol me esquivo
As lembranças que tenho de um dia que queria, de um tempo de sonhos e cartazes, de memórias espalhadas soltas pelas frases.
No fim do dia em que revejo e (re)ouço o que te disse. No fim do dia em que pensei como seria senão te visse.
Não é nada mais que um beijo. Não te roubo o desejo. Não que queiras (que queres). Não que sejas (que és). Não que digas.
Que não dizes nada. Quase nada. Mal te conheço. Mal te vi. Mal te desejo.
Para lá da linha estamos sós. Para cá da linha somos nós.

sexta-feira, abril 16, 2010

Orgulho



Por causa deste texto escrito no calor da discussão sobre o Bullying, foi este vosso ilustre escriba contactado pelo site Educare.pt para que esse mesmo texto fosse publicado na próxima semana. E fiquei contente. E por isso quis partilhar convosco. A partir de segunda, aqui.
Bom fim de semana.

sábado, abril 10, 2010

Diz que disse 29

Depois da Pim me dizer um segredo, ele chega, encosta a sua boca à minha orelha e sussurra:
- vou-te dizer um segredo.... um segredo não se pode dizer muito alto e um segredo não se pode gritar nem dizer muito alto e um segredo é arrumar o quarto.
e foi.
era segredo, eu sei, mas vocês também não vão dizer a ninguém.

quinta-feira, abril 08, 2010

Por causa de ti




Sabes, antes de ti eu dizia que era feliz. Que tinha uma vida cheia e que estava bem. Que tudo era perfeito.
Antes de ti fazia o que queria, quando queria e porque queria. Ia.
E depois vieste.
E no dia em que apareceste tudo mudou de vez.
O mundo ganhou cores que eu nunca tinha visto. O sol brilhou mais forte desse dia em diante. A relva ficou mais verde e o céu mais azul.
Enchi a alma que achei ter cheia. Bebi os dias a direito. Senti cada respiração tua. Cada suspiro teu. Senti-te no meu colo mal cabias nos meus braços. Agarrei-me a ti. Viciei-me em ti. Viciámo-nos.
Percebi como estava enganado. Como era só feliz um bocadinho. Como os dias eram pequenos antes de ti. Como a luz era fraca e como o mundo se pintava de tons pastel. Antes de ti.
E depois tu chegaste. Gritaste, choraste e sorriste.
Abriste os olhos, esses olhos grandes lindos, verdes. Abriste os olhos e sorriste.
E o mundo sorriu para ti. Por seres tão doce.
E depois cresceste e cresceste e começaste a correr e a falar e a perguntar e a querer saber. A querer saber tudo, todos os segredos, todos os caminhos, todas as palavras.
E depois cresceste mais um bocadinho e hoje... hoje faz 6 anos que o pai olhou para ti pela primeira vez.
Hoje faz 6 anos que o pai descobriu o que era o amor mais forte que se pode sentir.
Faz 6 anos que vi o teu sorriso... o mesmo que vi hoje antes de te dar um beijo e desejar boa noite.
Faz 6 anos que me apaixonei por ti princesa.
E amo-te tanto hoje como há 6 anos... vá, um bocadinho mais talvez.
E como todos os dias te digo baixinho quando te tapo antes de ir dormir, digo-o agora também: amo-te muito Pim’cesa.
Parabéns filhota.

sexta-feira, abril 02, 2010

Tão quente que queima




Hoje durmo sob as estrelas. Tapado por elas.
Sem frio (que me aquece tudo à volta e na lareira ardem histórias)
Fiz fogo com memórias.
Deitei os olhos à noite e perdi-me no céu. Vejo uma estrela e outra e mais outra.
Quem sou eu aqui perdido neste espaço imenso. Aqui deitado na relva molhada.
À espera de tudo e de nada.
Que não quero que o tempo passe. Que me quero esquecer aqui de tudo o resto.
São estas as certezas de quem ouve letras atrás de letras a crepitar. Palavras a gritar.
Fogo lento que queima frases inteiras só de olhar.
Ideias em lume brando.
Hoje não há nada que me impeça de avançar.
Nem o medo.
Às ideias, sou eu quem lhes dá vida. Omnipresente em cada linha. Sou a máxima santidade do que escrevo. Sou deus de cada folha e cada folha é o meu reino.
Deixo fugir entre o espaço enleios de que me desfaço. Deixo-os ir, emaranhados.
E eu aqui
em frente ao fogo
dou lume aos sonhos apagados.

Diz que disse 28



Há muito que queria comprar barro para quando estivéssemos aqui poder brincar com eles. e hoje comprei.
comprei, trouxe, pusemos uma mesa pequenina e uns bancos pequeninos no jardim e ali estivemos que tempos a fazer "coisas".

A dada altura:
eu: o que é isso Digos?
ele: é uma pedra
eu: boa filho (e contive o riso)
ela: olha que o Digos tem muito jeito para fazer pedras. Parece mesmo!

e parece mesmo.

segunda-feira, março 29, 2010

Como se escreve o vento?



Como se escreve o vento?
Com palavras soltas, desgarradas? Com sonhos altos e baixos que flutuam?
Como se escreve o vento?
Que eu sei como o sinto mas não o sei escrever.
Que sei que se enrola em mim e me beija e me acaricia e me aconchega.
E que às vezes chega doce e outras não.
Que às vezes passa por mim, faz-me uma festa e outra e segue. E outras fica colado à boca, ao corpo.
E outras leva-me tudo.
Como se escreve o vento que dança um tango a solo? Que serpenteia à minha frente e à volta. E que na volta me traz o mesmo sabor fresco que me deu à ida.
Como se escreve o vento que me trás o mar e me enche o peito? O mesmo que me leva com ele até ao céu. O vento que é meu e só meu por um instante.
O vento que me leva o fumo do cigarro amargo da boca. O vento que leva os beijos que lanço. O vento que agora está e agora não.
O vento que eu não sei escrever é o vento que me empurra à noite. É o vento que me diz que aguento. Que consigo. Que não vou parar agora.
O vento que me agarra e me tapa a passagem. O vento que é vento e que é uma aragem.
Este vento aqui à minha frente que faz dançar as folhas nas árvores. Que faz ondas no jardim e que deixa o lago inquieto.
Como eu, que não sei escrever o vento mas que quando o sinto, o deixo escrever por mim.

sexta-feira, março 26, 2010

Noite agitada



Os animais estavam todos na quinta até que um violento incêndio deflagrou. Ouviu-se um grito: corram; temos que salvar os animais. É preciso evacuar toda a gente e pô-los a salvo. Entraram os piratas disfarçados. Queriam os animais mas ninguém lhes disse onde estavam. Nem o policia que com a sua voz grossa dava até vontade de rir. De repente, irrompe pelo ar uma mota ninja que salva os animais e os leva para o pé de uma estrutura pós moderna longe dali. Toda colorida, era o local perfeito para uma quinta de substituição. Na garagem, o camião tentava entrar à força até que rebentou com o telhado fazendo-o voar como se levantado por um furacão.
Estando o problema resolvido, os animais a salvo, o incêndio extinto e os piratas longe dali, faltava só acabar a rampa para o sr. da cadeira de rodas que não conseguia subir escadas.
Depois... depois a mãe disse que estava na hora de dormir. Arrumámos os legos, eles lavaram os dentes, vestiram o pijama, xixi e cama.
Mais um beijo e mais um beijo e mais outro e ficou o dia fechado. Amanhã há mais e de certeza que vamos ter novas aventuras.

quinta-feira, março 25, 2010

eu e tudo à volta



Raios partam a folha branca.
Nem se enche de letras nem muda de cor. Nada. Está aqui especada. A olhar para mim. A ela não lhe devo nada e a mim... Talvez. Pelo que preciso de escrever como de respirar. Pelo que estive em apneia meses a fio e agora voltei. Pelo bem que me sabe. Pelo mal que me faz. Pelo ar que me traz. Pelo que me apazigua e me acalma.
A ela devo-lhe tudo. Da ideia que fui ao que sou.
Entro aqui e procuro a paz. Procuro o tempo.
Deixo-me embalar pelo vento, irado, revolto, mas ao mesmo tempo, solto, livre. Sem compromissos, nem atalhos nem caminhos. Sem virtudes. Aqui volto sempre a mim. Ao que fui, ao que sou.
Não tenho hora marcada e tenho sempre lugar. Não marquei, apareci.
Aqui sou só eu e a bendita folha branca que amo e odeio e venero. Aqui na folha por onde serpenteio. Aqui na folha onde tudo cabe sem saber de onde veio.
Aqui sou eu.
Aqui sou só eu. Eu e o que trago comigo. As malas cheias de ideias. Soltas, mal arrumadas, empurradas à força.
E acabo sempre por me esquecer de alguma coisa.
Não há viagem nesta folha de papel para onde consiga levar tudo e para onde acabo por trazer pouco.
Não sei quem vou encontrar pelo caminho e a maior parte das vezes dou de caras comigo e isso é bom.
Gosto de me ver quando me deixo aqui. Parado, quieto. Como o vento solto e revolto que não sai do lugar. Gosto de me ver pintado na parede dos dias.

Diz que disse 27



Ao jantar.
Ele: pai, tenho comichão.
Eu: onde filho?
Ele: no pé.
Eu: e então?
Ele: posso comichar?

[ataque de riso familiar]

segunda-feira, março 22, 2010

O céu, o sol e eu




Sou o sol no céu.
Sou só eu se tiro uma letra ao sol e outra ao céu.
Só eu.
No céu com sol, o céu, o sol e eu.
Sou eu.

amanhã



Tenho os olhos frios
Tenho o corpo gelado
Tenho a alma suja
E um poema rasgado

A mão dividida
Entre o dar e o querer
Um sonho e dois mundos
O fazer e não ser

Tenho a boca fechada
Um desejo calado
Tenho um peito que bate
Um dormir acordado

Tenho as lágrimas todas
Tenho o tempo perdido
Tenho um dia adiado
E o querer está despido

Tenho sede, tenho fome
Tenho um grito sem nome
Tenho a noite e o que queria
Amanhã tenho outro dia

sábado, março 20, 2010

Feito do que fui



Dia após dia o cenário piora. Dia após dia, mais curvado e perto do chão. Mais desequilibrado e mais trôpego. Cada vez as palavras custam mais a sair. Cada vez mais tenho menos. E cada vez menos me esqueço do que tive. Dos colos, das festas. Das palavras novas como “sucessivamente” por exemplo. Os cinemas ao domingo e as viagens de comboio. As tardes em Belém. A música.
Lembro-me de me sentar ao pé dele, de manhã, a ouvir o Pão com Manteiga. E quando ele se ria, eu ria-me também. Não fazia mal rir-me sem perceber. Se ele se ria era bom para rir e isso bastava-me. Nem queria perceber. Para quê?
Só queria estar ali.
Lembro-me de um velhinho gira-discos que tinha feito a guerra e que era para mim um troféu tê-lo no quarto. Herdei os discos de 45 rotações e as primeiras coisas que me lembro de tocar foram Elvis, Pat Boone e Otis Redding. E tocaram tanto.
Lembro-me de me apertar a mão à dele para não me perder. De me abraçar e me encher de beijos. De me ensinar a desenhar as letras, a contar, a pensar. Lembro-me de o ver chorar mas acima de tudo, de o ver rir. Rir muito. Um riso honesto, contagiante. Lembro-me da sua voz clara e de ser o mais forte. Sempre foi o mais forte, o maior, o mais doce e o melhor pai que alguém poderia ter.
E ontem de manhã a minha filha ofereceu-me um desenho que dizia: Pai, és o maior do mundo. E muito querido.

E então eu pensei que sou feito do que fui. De como o meu pai me desenhou o caminho e me deixou caminhar. De como me deixou magoar quando deixei as rodas pequenas da bicicleta para aprender a não me magoar mais. De como me deu espaço para crescer para que pudesse avaliar a área do que quero. De como me ensinou que as ferramentas nunca são demais. Que o saber não ocupa lugar e que quanto mais soubermos mais ricos nos tornamos.
Lembro-me de me deixar sonhar sempre. De não cercear as ideias fantásticas que tinha e de saltar comigo para dentro de um pequeno avião mágico que fazia com 2 bancos de cozinha.
Lembro-me de me ter deixado no aeroporto para poder viajar sozinho com 8 anos. Se ele não podia ir, que fosse eu e aproveitasse. E fui.
Lembro-me de correr Alandroal acima e abaixo sonhando que por aquelas ruas tinha ele brincado, corrido e saltado.
Lembro-me de vibrar com cada história da guerra. Cada minuto de aventura, de bravura e de loucura. De como aquele imaginário o transformava aos meus olhos num herói. De como me orgulhava.
Lembro-me de tudo como um filme que passa numa tela grande.

E quando me lembro, olho e vejo uma sombra do que foi. Ali sentado.
Cada vez mais curvado e perto do chão.

sexta-feira, março 19, 2010

Reflexo



Do outro lado tenho uns olhos abertos.
Querem que eu escreva o que não disse. Que me entregue aqui.
Que dispa o dia e tudo o que não interessa. Que me ponha a nu sem que o corpo arrefeça. Que diga em palavras doces o que ficou por dizer. Que sirvam para embalar quando o corpo quiser dançar. Que me deite e adormeça.
Querem fechar-se enquanto escrevo. Sonhar enquanto ouço ao longe o mar. Querem que descreva as ondas que chegam e as ondas que vão. Querem tudo numa linha e numa linha um trovão. Querem estremecer-se de emoção. Querem que aqui deixe toda a paixão. Todas as paixões. Todas as mínimas sensações.
Olhos abertos que me assustam. Que me pedem tudo o que lhes possa dar e não querem nada que os faça chorar.
Querem estes olhos que os faça levitar. Que os deixe soltos no ar.
Com 3 linhas de texto não querem mais ficar no chão. Querem sonhar com letras que escrevam amor e ir buscar outras que escrevam paixão.
Querem emoções desfiadas, alinhadas; letra após letra, espaço em cima, espaço em baixo. Querem que digam ao mundo tudo o que eu acho. Sobre o quê? nem sempre importa desde que o diga da forma certa e que não deixe nenhuma ideia à porta.
Querem estes olhos que não tiram os olhos de mim que faça de mim caminho e que os leve do princípio ao fim.
Querem estes olhos encontrar aqui o que sinto e o que penso. E o que vivi.
Não importa se foi hoje, ontem ou noutro dia qualquer. O que importa é que escreva e que escreva até doer. Que me esgote, que me entorne, que me derreta por fim.
Porque estes olhos são os meus e sou eu que olho para mim.

domingo, março 14, 2010

Ama





Ama
Ama e sente
Ama e sente e dá
Ama e sente e dá tudo o que tens até não saberes o que fazer. Desfaz o emaranhado de nós que te apertam. Liberta-te. Liberta o que sentes. Dá com a língua nos dentes. Conta uma mentira. Sobe ao fim do céu e lança um papagaio feito com o papel onde te escrevi. Deixa voar o que te disse. Deixa as palavras ganharem asas outra vez e voarem para longe.
Diz que me amas que me queres que não pensas noutra coisa, em mais ninguém. Que não sonhas senão comigo. Que este teu castigo te dá prazer. Que o que sentes não faz doer.
Diz que olhas para mim quando eu não vejo. Que suspiras quando me ouves. Que entras em casa e só me queres ver. Que me admiras. Que me amas sem perceber. Diz tudo o que quiseres quando estivermos os dois. Diz-me baixinho, ao ouvido, que queres ficar quieta, aninhada, abraçada a mim. Diz-me que sim.
Diz-me que te faço perder a razão. Diz-me que não. Que não és capaz de amar mais ninguém. Que só eu te conheço bem. Que ninguém te faz sentir assim. Se eu te amo? Claro que sim. E tu a mim.