quarta-feira, agosto 25, 2010

No Fundo




Falta-me ver tudo. Mergulhar no mar da lua. Perceber as incongruências da idade. Desejar e ter. Querer e fazer.
Ter à mão só porque sim. Dar-te um beijo. Estar assim.
Ser lua cheia todos os dias. Chorar os arrependimentos todos de uma vez. Descobrir a cura sem ir à loucura.
Não perder ninguém devagar. Não olhar.
Guardar para mim as memórias bem vivas. Jogar à bola outra vez contigo em Belém. Ir ao cinema de mão dada.
Ligar só para perguntar. Ouvir-te rir como dantes.
Não fiz nada e queria mostrar-te tudo. Sentir na tua voz o entusiasmo de sempre. Sentir-me forte e capaz. Ficar mudo de espanto por te ouvir contar histórias. Ser outra vez criança. Sentir o teu abraço apertado. Sentir a tua força. Ser mais como tu.
Queria que os meus filhos te vissem fazer coisas com as mãos. Desmontar qualquer coisa com milhões de parafusos e peças soltas. Chamar as ferramentas todas pelos nomes.
Deixá-los contigo uma tarde.
Uma e outra vez não consigo. E por mais que queira, o tu que eras não pode estar comigo. Por mais que quisesse evitar, por mais que te quisesse curar, por mais que não quisesse chorar, dou por mim sentado a escrever lágrimas no papel.
Por mais que te agarre, por mais que te puxe, por mais que queiras já não me olhas no olhos e eu precisava disso. De te ouvir ao olhar para mim. Do tanto que eras capaz de dizer num abraço apertado.
Sinto tanto a tua falta.
Fumo um maço numa noite e ainda não fiz nada.
Sábado vou mergulhar. Para os miúdos vou trazer uma pedra a cada um apanhada a trinta metros e a ti mostro-te as fotografias que tirar no fundo. Hás-de ver o azul pelo menos. O azul do mar.
Se calhar não percebes que sou eu no meio de tubos, máscaras e sei lá que mais mas sou eu pai. Estás a ver aqui? Sou eu lá em baixo.
E enquanto souberes que eu sou eu fico feliz.

3 comentários:

Unknown disse...

Como compreendo o teu sentimento transcrito!
Como entendo o teu desespero, na incapacidade para reverter a situação!
Como Ele ficaria feliz, se pudesse entender o que escreveste!
Mas se não entende, também não sofrerá!
Que te sirva de animo, porque és forte

Anónimo disse...

Não podendo (de)escrever de forma tão bonita e emocionante como gostaria, porque como sabes a ponta da caneta foge às palavras para se refugiar em traços menos organizados, deixo aqui um ABRAÇO. Não será certamente igual aos do teu pai mas dos nossos, dos apertados, dos leves ou distantes que só se dão a um amigo como tú.
RR

Ana disse...

Ele pode não rir e não te abraçar, pode não o revelar, mas o amor que sentimos, o amor com que nos tocam não desaparece, fica para sempre gravado em todas as células do nosso corpo.