sexta-feira, março 30, 2007

Eu tenho um amigo que é amigo de um amigo meu.


Eu tenho um amigo que é amigo de um amigo meu.
Que ri e chora como os outros.
Frustra-se com as expectativas e dá com a cabeça nas paredes.
Chora quando lhe apetece e ri muito.
Apaixona-se pelas pessoas. Às vezes desilude-se e então, segue viagem.
Ultrapassa os problemas com calma e prende-se nos detalhes das relações.
Conhece gente nova e dá o que tem de melhor.
Tem ideias que nunca hão-de sair da sua cabeça e outras que leva ao fim para serem um sucesso ou então, nada.
Eu tenho um amigo que é amigo de um amigo meu.
É admirado, seduzido, olhado de lado e bom amigo.
Deixa-se levar num semáforo pelas nuvens e encandeia-se com o sol, por mais ténue que seja a espreitadela.
Tem filhos que ama e que o fazem sofrer quando se magoam.
Brinca ao fim do dia e quando chega a casa distribui beijos.
Eu tenho um amigo que é amigo de um amigo meu.
Que quando se sente baralhado e confuso agarra na cabeça e escreve com ela pela noite dentro.
Dá voltas ao mundo que conhece e conhece mundos onde nunca foi.
Tem sempre opinião fundamentada. Seja na experiência ou na frescura de quem está de fora e sobre o assunto não sabe nada.
Acorda bem disposto e pronto para aproveitar as horas que o dia lhe der. Corre atrás de mais um sorriso por menos franco que seja e até é capaz de gostar de quem lhe faz mal.
Pensa em tudo e em nada e tem tantos segredos como outro amigo qualquer.
Guarda para si momentos seus e partilha com estranhos os sonhos de uma vida.
Incomoda-se com os maus jeitos da vida. Fica triste. Não lhe apetece.
Percebe muito de muito pouco e alguma coisa sobre o muito que há para saber.
Gosta de música. Tem medo do silêncio a não ser que esteja num teatro, num cinema ou numa sala de espectáculos.
Adormece ao som dos dias que batem como ondas nas paredes do crânio. Agita-se com as injustiças e custa-lhe não ter tempo para quem gosta dele.
Eu tenho um amigo que é amigo de um amigo meu.
Que agarra no telefone só para dizer olá porque não há nada pior que um olá pendurado por preguiça.
Sai de casa de manhã e adora a língua dos mais pequeninos, atabalhoada numa imensidão de coisas que têm para dizer muito depressa.
Tem pena de não ter mais tempo para perder porque lhe sabe bem perder tempo ao sol.
À noite, não dispensa um café na máquina nova e o frio do mar que lhe entra peito adentro.
Pode chover o mundo que há-de sempre estar bom lá fora para mais um cigarro. Detesta o vício que lhe dá tanto prazer e já o largou uma vez porque sim.
Eu tenho um amigo que é amigo de um amigo meu.
Que admira nos outros a racionalidade que não tem e que se esforça para que venha alguma na rede que lança lentamente todos os dias.
Quando encostado à parede, perde-se nas entrelinhas do interlocutor porque há sempre coisas que não se podem dizer e outras que não quer ouvir.
Deslumbra-se num traço, numa mancha de cor ou numa forma complexa de tão simples que é.
Aninha-se no quente dos corpos quando tem frio e no quente dos olhos quando quer mimo.
Agarra-se aos gestos e ao tom de voz quando ama. Imita quem gosta. Escreve muito.
Eu tenho um amigo que é amigo de um amigo meu.
E se os dias tivessem música nas ruas e um espelho gigante no céu, esse amigo que eu tenho que é amigo de um amigo meu, era eu.

quarta-feira, março 28, 2007

Diz que disse 8

A meio da segunda parte do Portugal vs Sérvia, senta-se a Pim ao pé de mim e diz: "estás muito doente pai."
"estou?" perguntei eu.
"muito. vou fazer-te uma consulta" e foi buscar a sua malinha de médica.
Auscultou-me, mediu-me a tensão e tirou a febre.
"então sra. dra. acha que estou doente?"
"sim sim"
"e acha que preciso de algum medicamento sra. dra.?"
"sim, toma"
já no fim da consulta, agarrou no martelo para testar os reflexos e deu-me uma valente martelada no joelho.
"então filha!"
olhou muito séria para mim e disse-me: "não é filha, é sra. dra."
(...)
ando eu o dia inteiro a dizer às pessoas que não me tratem por dr., chego a casa e é isto.

domingo, março 18, 2007

Isto vai


À média de um post por mês, temo pela saúde deste bloco de notas.
A verdade é que o tempo, ora não permite, ora não ajuda, ora não me inspira, ora é hora de ir para a cama.
A verdade é que tenho os minutos quase contados.
Tenho um filho novo que precisa de mimos e carinhos e mais coisas que os filhos novos precisam. E que muito disso dá a mãe enquanto eu me encarrego da pim. E tudo isto dá muito trabalho, muito prazer e muito de nós. Nunca como agora – que se juntou no mesmo prazo tudo o que havia de se juntar – me senti tão precisado de me concentrar, de me focar, de me organizar. Nunca como agora precisei de mim mais afinado. E tenho-o feito. À custa de pequenas coisa, como escrever aqui.
Mas não desisto e não me esqueço.
Navego menos, deambulo menos. Distraio-me menos. Ainda não sei se me faz bem mas tenho que o fazer.
Tenho que. Tenho que.
E depois há as ideias – que até essas se começaram a focar. As ideias disto e daquilo que agora vêm mais para isto e muito menos para aquilo. Agora é para aqui e parece que de repente se fecharam as torneiras todas de uma vez. Agora abro uma. E fecho. Abro outra, e fecho.
Sinto que dantes se abriam todas de uma só vez. Coisas em catadupa que me enchiam a cabeça e me faziam voar por imagens e sons e palavras e pessoas e caras e corpos e pormenores de um dia. Objectos que se abriam donde saiam mais objectos e mais coisas e outras coisas. E bastava o som do comboio a passar para me levar lá dentro com toda a gente que lá vai – de quem não sei nada mas imaginava saber.
Continuo atento e observo. Surpreendo-me ainda. Viajo ainda. É só tempo de aprender a viver com isto.