segunda-feira, agosto 30, 2010

Diz que disse 35

Porque podiam, a Pim e o Digos estiveram 4 semanas fora de casa. Duas connosco e mais duas com os avós.
Chegámos ontem ao final da tarde e naturalmente, as saudades dos brinquedos, dos livros e até do espaço, deram-nos uma boa hora e meia de "quase" paz.
Enquanto estávamos na cozinha a beber um café, passa o Digos com um ar muito decidido. Caixa das ferramentas debaixo de um braço e uma mala com brinquedos na outra mão.
- onde é que vais Digos?
- vou pôr isto à porta.
- para quê filho?
- para não me esquecer.
- não te esqueceres de quê?
- de levar isto para a casa do Alentejo quando for de férias.
- (...)
Não é fácil explicar a uma criança de 3 anos que as férias acabaram e que ainda falta "um bocadinho" até chegarem novamente. Mas explicámos e ele, rendido, lá agarrou nas suas coisas e foi arrumar no quarto.

Não se equaliza a paixão




Já não tenho a dificuldade inicial quando monto o equipamento. Manómetros e traqueia pela esquerda, regulador e auxiliar à direita.
Abro a garrafa, verifico tudo, analiso o ar e do que é composto e volto a fechar.
Tudo para o barco e vamos.
É sempre a parte mais dura. Não se faz nada a não ser encher o tempo com conversa mas quando se chega ao sítio certo é ver quem prepara tudo mais depressa. Verificações repetidas por segurança. O meu equipamento e o de quem me acompanha. E então começa.
De costas para a água, uma cambalhota e por fim o O.K. final. Está tudo bem? Estamos todos? Vamos embora para baixo.
E o ir para baixo é o princípio de tudo. Basta meio metro. Meio metro apenas e já estamos lá. Já não tiramos o regulador da boca nem por nada. Quero descer.
Vou tirando ar ao colete e lentamente afasto-me da superfície. Um olho na pressão da garrafa, outro no profundímetro e continuamos. Metro a metro, mais coisa menos coisa paro. Os ouvidos dão sinal e equalizo. Equilibro pressões que o corpo pede.
Quanto mais desço mais quero descer.
Cinco metros, seis, sete. Isto não é nada. Hoje vamos aos 30. Nova paragem; aperto o nariz, olho para cima e faço força. Estalou. ‘tá bom. Desço e desço. Olho para quem me rodeia. Está tudo bem? Está Manuel. Sim, os ouvidos estão bons. O Pedro olha para mim. Estás bem? Faço sinal que sim. Desta vez a máscara já não embacia. Desta vez a máscara está colada a mim e nem uma gota de água me distrai. Nada.
Dezoito metros. A partir daqui é tudo novo. Vinte.
Paro. Subo um bocadinho; equalizo e desço novamente.
Respiro fundo. 3 ou 4 vezes bem fundo. Fico mais calmo. Controlo melhor a respiração. A flutuabilidade e os meus movimentos. Quanto mais calmo, melhor. Não há pressas e não tenho medo nenhum. Se alguma coisa correr mal, alguém me há-de dar ar. Mas não corre.
À nossa volta está muita gente que não vejo. Sei que estão lá porque vimos os barcos. Somos muitos os que se apaixonaram por isto. É muita gente.
Mas lá em baixo, somos só nós. O Manuel, o Pedro, a Ana e eu.
Paramos. À nossa frente, um monte de ferro transformado em recife. Mal se percebe ao princípio o que é isto. Mas depois parece que tudo começa a ganhar forma. Está deitado a descansar este cargueiro que se partiu aqui há 21 anos. Dezanove dos 45 tripulantes ficaram lá. Mergulharam com ele. Morreram ali.
É um local sagrado este.
E belo. Ergue-se do fundo. Faz parte do fundo.
Num dos lados, um enorme rasgão deixa perceber o interior do barco. É grande. É enorme. Mesmo partido o River Gurara não se mostra todo. Mais tarde voltamos para o segundo mergulho. À vez, espreitamos. O Manuel passa-nos a lanterna e quando sou eu pergunto se posso entrar. Um bocadinho, diz-me por sinais. A curiosidade é mais forte que o medo. Há ferros a toda a volta. Numa fenda que parecia tremenda mal me descuido e dou com a cabeça em qualquer lado. Procuro um sítio onde me apoiar. Encontro. Respiro. Não percebo mas estou 4 metros para dentro na barriga do monstro. Lá de fora – dizem-me depois – não me viam. Não percebi. Perdi-me com a lanterna a descobrir caminhos impossíveis de fazer de estreitos. São dezenas de metros para lá de onde não passo. Cabos, peças de navio. Desfaz-se nas luvas este bicho que já teve 175 metros de comprido.
Ali, estático, nem penso na respiração, na flutuabilidade, em nada. Estou a ver. Estou quieto.
Um toque no ombro. Tenho que sair? O.K.
Quanto de ar? 80, 70. Quem tem menos manda. Ainda damos uma volta pelo leme e pelo hélice. É tudo grande. Mas pequeno comparado com o que sinto.
Era capaz de estar horas a fio lá em baixo. Não me canso. Toco nos peixes que nadam à nossa volta. Apanho as pedras que prometi levar e disparamos a máquina, quase sem perceber, 160 vezes. E houve bonecos engraçados.
Não respires agora por causa das bolhas. Sorrio e sustenho a respiração. Já está.
Quero voltar aqui.
Quero voltar aqui; voltar à água. Quero pousar nas rochas devagar. Ver os peixes, as anémonas e os pequenos corais. Quero ver este barco afundado outra vez.
Respirar devagar, perder-me com os olhos. Subir meio metro, descer meio metro. Controlar o meu corpo no espaço.
Quero voltar porque estou apaixonado e o que sinto, por norma, dificilmente consigo equalizar.

quarta-feira, agosto 25, 2010

No Fundo




Falta-me ver tudo. Mergulhar no mar da lua. Perceber as incongruências da idade. Desejar e ter. Querer e fazer.
Ter à mão só porque sim. Dar-te um beijo. Estar assim.
Ser lua cheia todos os dias. Chorar os arrependimentos todos de uma vez. Descobrir a cura sem ir à loucura.
Não perder ninguém devagar. Não olhar.
Guardar para mim as memórias bem vivas. Jogar à bola outra vez contigo em Belém. Ir ao cinema de mão dada.
Ligar só para perguntar. Ouvir-te rir como dantes.
Não fiz nada e queria mostrar-te tudo. Sentir na tua voz o entusiasmo de sempre. Sentir-me forte e capaz. Ficar mudo de espanto por te ouvir contar histórias. Ser outra vez criança. Sentir o teu abraço apertado. Sentir a tua força. Ser mais como tu.
Queria que os meus filhos te vissem fazer coisas com as mãos. Desmontar qualquer coisa com milhões de parafusos e peças soltas. Chamar as ferramentas todas pelos nomes.
Deixá-los contigo uma tarde.
Uma e outra vez não consigo. E por mais que queira, o tu que eras não pode estar comigo. Por mais que quisesse evitar, por mais que te quisesse curar, por mais que não quisesse chorar, dou por mim sentado a escrever lágrimas no papel.
Por mais que te agarre, por mais que te puxe, por mais que queiras já não me olhas no olhos e eu precisava disso. De te ouvir ao olhar para mim. Do tanto que eras capaz de dizer num abraço apertado.
Sinto tanto a tua falta.
Fumo um maço numa noite e ainda não fiz nada.
Sábado vou mergulhar. Para os miúdos vou trazer uma pedra a cada um apanhada a trinta metros e a ti mostro-te as fotografias que tirar no fundo. Hás-de ver o azul pelo menos. O azul do mar.
Se calhar não percebes que sou eu no meio de tubos, máscaras e sei lá que mais mas sou eu pai. Estás a ver aqui? Sou eu lá em baixo.
E enquanto souberes que eu sou eu fico feliz.

quarta-feira, agosto 11, 2010

Coisas Simples




Estou encostado, meio deitado num cadeirão insuflável que mal se mantém amparado.
Balanço ao som da rega. Ora para cá, ora para lá.
Por cima, a mesma companhia de ontem e dos outros dias todos.
Os pés nus vão sendo compassadamente molhados pelos restos colaterais que os aspersores libertam (apesar de cuidadosamente alinhados).
O Alentejo continua quente – mesmo a esta hora - e o dia de amanhã promete ser febril.
As crianças dormem. Estão cansadas e quando chegam à cama a vontade de continuar as conversas é rapidamente anulada pelo sono.

Lá dentro, por detrás de um laranja vivo num tecido leve, esperam-me mais umas horas de conversa. Mais um entrelaçar de pés no sofá enquanto os personagens de um filme qualquer contam uma história.
Cá fora, encostado, meio deitado, debito mais uma ideia. Sobre as coisas simples que me deixam feliz. Como os pés molhados.

Fumo mais um cigarro.
Perco-me na moldura amarela da janela.
Fecho os olhos no escuro à procura de uma estrela. Quero vê-la.

Não quero notícias nem novidades. Não quero saber de meias verdades. Não quero saber.

A cadência ritmada e este tac-tac-tac deixam-me as ideias claras. Ponho de parte as palavras caras. Quero o mais simples das coisas simples. Quero os pés molhados, uma e outra vez. Até que o jardim se sinta saciado. Até que o calor seja abafado. Até que a noite se entregue toda. Até amanhã.

terça-feira, agosto 10, 2010

sempre igual




Não muda o cenário que me envolve quando escrevo.
É quase sempre a noite que me mexe.
Quase sempre a estrela que não esquece.

É a memória das horas cheias que se entornam pelos dias.
Dos risos, das palavras e das alegrias.

Do lume que se fez forte; do tempo que não tem norte.
Da aragem solta que me leva o fumo.
Dos grilos longe que marcam o compasso.
Dos amores mais sólidos que o aço.

Das crianças aos gritos no jardim. Dos mergulhos do Digos e da Pim.
Dos amigos a correr; do saber sem saber que fazem hoje o que serão depois.
Que amanhã quando o sol nascer e quando abrirem os olhos, tudo o que vão ver é um sorriso largo. É um bom dia cheio de saudades.
É um abraço, um beijo e os planos das horas cheias de novidades.

À minha volta estou só eu. Na minha volta não estou só.
Uma sebe mal aparada não conta que só se acerta no Outono ou na primavera. E agora é verão e não posso agarrar na tesoura só porque a estética botânica diz que sim. Não posso e é assim.

Obedeço a estas regras naturais. Trato da relva que ouço crescer nos dias mais longos.
Estendo os dias ao sol e escolho a molas melhores.
Não por serem a mais fortes mas por serem as maiores.

Desenho as palavras que me peço. Escrevo o que quero e o que não esqueço.
Desdenho os escritores maiores. Pela lucidez, pelo que se impuseram, pelo talento.
Pelas regras que seguiram no seu tempo. Pelo tempo que ganharam na escrita que nos deram. Pela capacidade absoluta de dizer tudo o que sentiam.

Desdenho e admiro os escritores maiores. Por não ser capaz de o fazer. Por não ter pretensões e só prazer.
Pelo gozo que tiro quando uma frase sai bem. Pelo bem que me faz sem ter que o fazer a mais alguém.

E por ser tão complicado, tão intrinsecamente rebuscado; por ser tudo quase nada. escrevo isto numa penada, fecho o texto e vou para dentro.

quarta-feira, agosto 04, 2010

Diz que disse 34

O Digos adora o avô e ficou todo contente quando lhe dissemos que depois das férias ainda teria mais uma semana com o avô.
À saida, agarra-se a ele, abraça-o e diz-lhe com ar solene:
- Até Greve.

A ver se me ponho a pau não se junte o bicho à irmã e formem um sindicato.

terça-feira, agosto 03, 2010

O Escafandro e a Borboleta



As férias têm destas coisas. Deixam-nos à mercê dos dias e nós, de férias, deixamo-nos ir. Sem horários, sem pressa para coisa nenhuma – a não ser para chegar à praia antes das 9 e meia. Tudo o resto tem tempo.
E como tudo o resto para além do que tem tempo, continua, ligo o rádio de manhã só para saber o que é que o resto do mundo anda a fazer. Regra geral, 3 notícias chegam. São as grandes parangonas do dia e repetidas à exaustão de meia em meia hora não me vão trazer nada de novo para além da primeira vez em que as ouço.
Mas hoje, hoje foi diferente. Hoje as notícias que trazia o éter não me deixaram indiferente.
A semana passada foi o António Feio. Hoje, Mário Bettencourt Resendes. E se a semana passada foi a morte de um actor que me habituei a ver na televisão e no teatro e com quem estive uma vez apenas, hoje foi diferente. Hoje foi um professor de faculdade. Daqueles por quem se ganha um tremendo respeito pela sapiência infinita e generosidade na distribuição de saber. Hoje foi o professor de faculdade por quem – acredito – todos os seus alunos ganharam admiração e respeito.
Durante um ano, foi meu professor e durante um ano, todas as aulas foram plenas de sabedoria, de experiência e de uma tremenda simpatia.
Se calhar por nunca ter sido um aluno espantoso – longe disso – não foram muitos os professores que guardo da minha vida académica. Da secundária, um único com quem me cruzei há pouco tempo na rede. Da faculdade, meia dúzia e desses, 3 que guardo com enorme apreço e carinho. O Mário Bettencourt Resendes era um desses.
E mais uma vez, doença sinistra que bate à porta e mais uma vez, a sabedoria de uma vida não foi capaz de a ludibriar.
Ao homem e ao professor digo adeus. A tudo o resto,
Lá em casa, numa prateleira, repousa um livro que comprei quando mo indicou. “O Escafandro e a Borboleta”. Fala de um homem que no pico da sua carreira sofreu um acidente vascular cerebral paralisando-o por completo com excepção do olho esquerdo e do cérebro. Foi o suficiente para letra a letra escrever o livro em questão. Um livro autobiográfico carregado de esperança e de perseverança.
Ao escrever isto, sinto-me como um jornalista à antiga em início de carreira. Ao que parece, quem entrava fresquinho numa redacção de qualquer pasquim tinha a dolorosa tarefa de fazer a ronda pelos hospitais, policia e bombeiros para saber as desgraças. E quando graves, reportar os óbitos.
Quem me contou foi o Professor Mário Bettencourt Resendes e tal como aos jovens jornalistas, de vez em quando a notícia que reportavam tocava-lhes mais fundo.
Adeus professor. E obrigado.