domingo, outubro 30, 2005

Está tudo tratado

Andava triste já há um tempo. Tanto, que nem conseguia precisar muito bem desde quando sentia essa nuvem pesada e negra sobre a cabeça. Esse desalento quase mortal de tanto que lhe entorpecia os membros. Fazia a sua vida normal de todos os dias e todos os dias pensava que um dia tinha acordado assim, mas não sabia bem porquê. Sabia que de um dia para o outro se tinha dado conta que já não havia paixão, namorada ou amigos. Da família sabia muito pouco e um telefonema de mês a mês bastava para saberem que ele estava (bem). Ele "estava" simplesmente mas a sua tia distante no raciocínio e nos quilómetros que os separavam tinha como “estar bem” ouvi-lo apenas. E ele fazia-lhe essa vontade.
O dia começava cedo – por volta das 7. Acordava, tomava o seu banho e barbeava-se. Vestia o seu fato escuro, a camisa branca e a gravata azul e saía de casa em direcção à estação. Chegava regra geral, 2/3 minutos antes do sonoro apito do combóio e nessa altura, lá se perfilava na quinta pedra preta a contar do 3º banco. Esse era o local que o colocava exactamente junto à 1ª porta da 2ª carruagem. E nada disto era feito com método. Era apenas o hábito e o apito que o impeliam para aquela pedra qual teoria de Pavlov. Aos bons dias envergonhados dos companheiros habituais de carruagem acenava com a cabeça sem abrir a boca. A viagem demorava pouco menos de 20 minutos e a caminhada até ao edifício da seguradora onde trabalhava mais 10. Entrava de olhos colados no chão, despia o casaco e afundava-se nas centenas de processos e papeis e carimbos que o emolduravam na secretária vazia de vida. Aos telefonemas respondia com cortesia mas sem um sorriso que se sentisse na sua voz. Ao meio dia e meia, saía sem aceitar convite algum que lhe fosse feito para almoçar. Mas almoçava, sozinho, metido no meio de um prato do que estivesse a sair. Essa era a sua ementa. E a sua vida. Tudo o mais rápido possível para poder ir para casa, descalçar-se, despir-se e sentar-se em frente à televisão horas e horas a fio. Não havia um objectivo, uma meta, um prazer. Um sorriso. Nada na sua vida o faria abrir a boca para esboçar um ar mais leve.
E foi assim, até um dia ser encontrado em casa, sentado no sofá, com a televisão ligada. Nem vizinhos nem ninguém dera pela sua falta, não fora o chefe do serviço achar estranho que alguém que nunca em vinte e dois anos de serviço tinha chegado atrasado, tivesse um dia faltado. Isso e a estranha arrumação da sua secretária, sem papeis, sem canetas, sem mácula. Limpa como nova e uma nota apenas num post-it amarelo “Está tudo tratado”.

sexta-feira, outubro 28, 2005

O Natal está à porta, alguém é capaz de abrir?

O natal já chegou – pelo menos aqui. As grinaldas estão penduradas, as fitas já decoram o edifício e as luzes, estrelas e demais adornos estão quase quase no sítio. O que na verdade é uma merda. Tanta decoração e preparação fazem com que, chegada a verdadeira época natalícia, já não possa ver árvores, estrelas, presépios e tudo o que tenha minimamente a ver com o Natal. Não me apetece o bacalhau, o cabrito, os doces típicos, o caraças. Ainda por cima o ano passado no dia 24 fui mais cedo para dar uma ajuda em casa na preparação da consoada e fiquei sem gasolina no meio da auto-estrada. Paguei €35 por 5 litros de gasolina que quase não davam para chegar à bomba e quando finalmente entrei em casa, já estava toda a gente à mesa à minha espera. Foi bom foi. Foi muito agradável. Agora que o Natal está à porta, alguém é capaz de abrir?

quinta-feira, outubro 27, 2005

Saudades de Nova Iorque

Tenho saudades de Nova Iorque. Tenho saudades das ruas cheias de gente a toda a hora e do fumo denso que o chão cospe. Tenho saudades do cheiro agri-doce do pronto-a-comer na esquina da nossa rua. Tenho saudades de Central Park e dos esquilos e dos cães que passeiam os seus donos. Tenho saudades dos prédios e dos passeios; dos carros que só aparecem nos filmes e das bandeiras às janelas. Tenho saudades do ar despreocupado com que toda a gente anda. Tenho saudades de ir às compras e ver coisas que ainda não há cá. Tenho saudades de olhar para o céu e ver janelas que dão para o chão em edifícios impossíveis de desenhar que cresceram na cabeça de um arquitecto qualquer. Tenho saudades da ponte de Brooklin que amo desde sempre. Tenho saudades do Chrysler que amo desde sempre. Tenho saudades do Flat Iron desde sempre. Tenho saudades de Nova Iorque. Desde sempre.
dia 2 de escrita normal.
O dia amanheceu como se o mundo fosse acabar. Acordei, preparei o biberão da minha filha e fui tomar banho. Voltei e a pim pim já estava acordada.
Olhar para aquela cara e aquele sorriso maravilhoso escondido por detrás da chucha fez nascer o sol. Depois, o abracinho e o "papá" prolongado deu ao meu dia uma luz tal que ainda não consegui tirar os óculos.

quarta-feira, outubro 26, 2005