terça-feira, outubro 07, 2008

Antes de acordar outra vez



Há por aí um beijo envenenado, apaixonado. Daqueles como o primeiro que nos deixa o corpo anestesiado.
Inebriado de prazer, sedento de saber a que sabe o resto depois do beijo. Do primeiro.

Há pelas ruas um corpo doce e macio que mesmo sem roupa alguma não sente o frio. Que desliza pela calçada, corpo ao sol. Nem frio nem quente. Nada.

Há um olhar por aí. Que nos seduz mesmo quando não nos vê. Que nos despe a alma e nos lê. Que nos sente o medo e recua. E ataca manso de olhos no chão para chegar perto e deixar que esses olhos nos levem pela mão. De mão dada.

Há uma estrela que noite após noite brilha só para mim.
Que me seduz com a sua luz. Que me cega de deslumbre para me deixar sem norte e me faz andar à roda à espera que dê com o corpo na sorte. Ou um dia na morte.

Chamo a mim as forças que posso. Arrasto o corpo atrás do sonho de um dia me deitar antes de acordar. De pousar a cabeça na lua e sentir o sal do seu mar.

Aos tropeções no vento, dou de caras contigo. Sinto os teus cabelos por entre os meus dedos. Passo um dedo só na curva do teu cheiro. Pouso-o na boca.

Silêncio.

Só a música da noite. De uma viagem na estrada lá ao fundo e de um grilo incansável mesmo aqui ao pé de mim. Neste enorme jardim. Nesta enorme moldura verde que me separa do outro lado.

Mais uma palavra e morro. Mais um suspiro e grito por socorro.

Mais uma vez e caio. Mais um olhar e desmaio.

Mais um beijo e começo a sonhar a três. E basta apenas um beijo para acabar tudo de vez.

Sentado no parapeito do inferno, contemplo as chamas que numa noite gelada são um bálsamo quente, húmido e terno. Arrumo as ideias no armário, fumo outro cigarro e deixo-me ir.
Está na hora. É agora.

Tanto e nada para acordar outra vez cansado, esgotado e sentado em cima dos dias que acabei por não arrumar.
Talvez amanhã os separe por temas e os arquive. Talvez amanhã os ponho em montes, lhes tire o pó e suspire.
Talvez amanhã que agora já o dia novo chegou e eu, agarrado aos gritos doces e pequenos da manhã, esqueço-me de tudo. Lembro-me de tudo.
E fico. À espera que de novo me acorde o sonho. Que de novo se abra a noite escancarada e descarada. Sem um único prurido, sem vergonha de nada, sem um gemido. Sem um sorriso.
E só eu sei como esse despertar me mata.