sábado, março 20, 2010

Feito do que fui



Dia após dia o cenário piora. Dia após dia, mais curvado e perto do chão. Mais desequilibrado e mais trôpego. Cada vez as palavras custam mais a sair. Cada vez mais tenho menos. E cada vez menos me esqueço do que tive. Dos colos, das festas. Das palavras novas como “sucessivamente” por exemplo. Os cinemas ao domingo e as viagens de comboio. As tardes em Belém. A música.
Lembro-me de me sentar ao pé dele, de manhã, a ouvir o Pão com Manteiga. E quando ele se ria, eu ria-me também. Não fazia mal rir-me sem perceber. Se ele se ria era bom para rir e isso bastava-me. Nem queria perceber. Para quê?
Só queria estar ali.
Lembro-me de um velhinho gira-discos que tinha feito a guerra e que era para mim um troféu tê-lo no quarto. Herdei os discos de 45 rotações e as primeiras coisas que me lembro de tocar foram Elvis, Pat Boone e Otis Redding. E tocaram tanto.
Lembro-me de me apertar a mão à dele para não me perder. De me abraçar e me encher de beijos. De me ensinar a desenhar as letras, a contar, a pensar. Lembro-me de o ver chorar mas acima de tudo, de o ver rir. Rir muito. Um riso honesto, contagiante. Lembro-me da sua voz clara e de ser o mais forte. Sempre foi o mais forte, o maior, o mais doce e o melhor pai que alguém poderia ter.
E ontem de manhã a minha filha ofereceu-me um desenho que dizia: Pai, és o maior do mundo. E muito querido.

E então eu pensei que sou feito do que fui. De como o meu pai me desenhou o caminho e me deixou caminhar. De como me deixou magoar quando deixei as rodas pequenas da bicicleta para aprender a não me magoar mais. De como me deu espaço para crescer para que pudesse avaliar a área do que quero. De como me ensinou que as ferramentas nunca são demais. Que o saber não ocupa lugar e que quanto mais soubermos mais ricos nos tornamos.
Lembro-me de me deixar sonhar sempre. De não cercear as ideias fantásticas que tinha e de saltar comigo para dentro de um pequeno avião mágico que fazia com 2 bancos de cozinha.
Lembro-me de me ter deixado no aeroporto para poder viajar sozinho com 8 anos. Se ele não podia ir, que fosse eu e aproveitasse. E fui.
Lembro-me de correr Alandroal acima e abaixo sonhando que por aquelas ruas tinha ele brincado, corrido e saltado.
Lembro-me de vibrar com cada história da guerra. Cada minuto de aventura, de bravura e de loucura. De como aquele imaginário o transformava aos meus olhos num herói. De como me orgulhava.
Lembro-me de tudo como um filme que passa numa tela grande.

E quando me lembro, olho e vejo uma sombra do que foi. Ali sentado.
Cada vez mais curvado e perto do chão.

1 comentário:

Jô disse...

de tudo o que a vida nos tira, não nos tira as memórias, os sorrisos que sorrimos, os amores que sentimos e que nos tornam naquilo que somos. dentro de nós vivem para sempre como heróis todos aqueles que amamos e que valem a pena.