segunda-feira, agosto 30, 2010

Não se equaliza a paixão




Já não tenho a dificuldade inicial quando monto o equipamento. Manómetros e traqueia pela esquerda, regulador e auxiliar à direita.
Abro a garrafa, verifico tudo, analiso o ar e do que é composto e volto a fechar.
Tudo para o barco e vamos.
É sempre a parte mais dura. Não se faz nada a não ser encher o tempo com conversa mas quando se chega ao sítio certo é ver quem prepara tudo mais depressa. Verificações repetidas por segurança. O meu equipamento e o de quem me acompanha. E então começa.
De costas para a água, uma cambalhota e por fim o O.K. final. Está tudo bem? Estamos todos? Vamos embora para baixo.
E o ir para baixo é o princípio de tudo. Basta meio metro. Meio metro apenas e já estamos lá. Já não tiramos o regulador da boca nem por nada. Quero descer.
Vou tirando ar ao colete e lentamente afasto-me da superfície. Um olho na pressão da garrafa, outro no profundímetro e continuamos. Metro a metro, mais coisa menos coisa paro. Os ouvidos dão sinal e equalizo. Equilibro pressões que o corpo pede.
Quanto mais desço mais quero descer.
Cinco metros, seis, sete. Isto não é nada. Hoje vamos aos 30. Nova paragem; aperto o nariz, olho para cima e faço força. Estalou. ‘tá bom. Desço e desço. Olho para quem me rodeia. Está tudo bem? Está Manuel. Sim, os ouvidos estão bons. O Pedro olha para mim. Estás bem? Faço sinal que sim. Desta vez a máscara já não embacia. Desta vez a máscara está colada a mim e nem uma gota de água me distrai. Nada.
Dezoito metros. A partir daqui é tudo novo. Vinte.
Paro. Subo um bocadinho; equalizo e desço novamente.
Respiro fundo. 3 ou 4 vezes bem fundo. Fico mais calmo. Controlo melhor a respiração. A flutuabilidade e os meus movimentos. Quanto mais calmo, melhor. Não há pressas e não tenho medo nenhum. Se alguma coisa correr mal, alguém me há-de dar ar. Mas não corre.
À nossa volta está muita gente que não vejo. Sei que estão lá porque vimos os barcos. Somos muitos os que se apaixonaram por isto. É muita gente.
Mas lá em baixo, somos só nós. O Manuel, o Pedro, a Ana e eu.
Paramos. À nossa frente, um monte de ferro transformado em recife. Mal se percebe ao princípio o que é isto. Mas depois parece que tudo começa a ganhar forma. Está deitado a descansar este cargueiro que se partiu aqui há 21 anos. Dezanove dos 45 tripulantes ficaram lá. Mergulharam com ele. Morreram ali.
É um local sagrado este.
E belo. Ergue-se do fundo. Faz parte do fundo.
Num dos lados, um enorme rasgão deixa perceber o interior do barco. É grande. É enorme. Mesmo partido o River Gurara não se mostra todo. Mais tarde voltamos para o segundo mergulho. À vez, espreitamos. O Manuel passa-nos a lanterna e quando sou eu pergunto se posso entrar. Um bocadinho, diz-me por sinais. A curiosidade é mais forte que o medo. Há ferros a toda a volta. Numa fenda que parecia tremenda mal me descuido e dou com a cabeça em qualquer lado. Procuro um sítio onde me apoiar. Encontro. Respiro. Não percebo mas estou 4 metros para dentro na barriga do monstro. Lá de fora – dizem-me depois – não me viam. Não percebi. Perdi-me com a lanterna a descobrir caminhos impossíveis de fazer de estreitos. São dezenas de metros para lá de onde não passo. Cabos, peças de navio. Desfaz-se nas luvas este bicho que já teve 175 metros de comprido.
Ali, estático, nem penso na respiração, na flutuabilidade, em nada. Estou a ver. Estou quieto.
Um toque no ombro. Tenho que sair? O.K.
Quanto de ar? 80, 70. Quem tem menos manda. Ainda damos uma volta pelo leme e pelo hélice. É tudo grande. Mas pequeno comparado com o que sinto.
Era capaz de estar horas a fio lá em baixo. Não me canso. Toco nos peixes que nadam à nossa volta. Apanho as pedras que prometi levar e disparamos a máquina, quase sem perceber, 160 vezes. E houve bonecos engraçados.
Não respires agora por causa das bolhas. Sorrio e sustenho a respiração. Já está.
Quero voltar aqui.
Quero voltar aqui; voltar à água. Quero pousar nas rochas devagar. Ver os peixes, as anémonas e os pequenos corais. Quero ver este barco afundado outra vez.
Respirar devagar, perder-me com os olhos. Subir meio metro, descer meio metro. Controlar o meu corpo no espaço.
Quero voltar porque estou apaixonado e o que sinto, por norma, dificilmente consigo equalizar.

2 comentários:

Anónimo disse...

Como é bonito transmitir sentimentos com a leveza de quem põe um regulador na boca.
Es o maior!
Buddy God

Ana disse...

...e de repente dou por mim a respirar devagar, a equalizar e a olhar com a calma de quem sente. Sem pressas e sem medos. É bom quando as palavras nos transportam. Nem que seja por momentos.