quarta-feira, fevereiro 10, 2010

ar

Vamos lá então.
Tenho andado aqui a pensar – que é sempre uma forma “simpática” de começar um texto para quem esteve meses sem dar notícias – em meia dúzia de coisinhas que aqui podia deixar.
São ideias soltas e sentires que se vão acumulando e juntando até que não dá mais.
Sem ser por partes – porque indo por partes perde-se metade da piada – vou desfiando ideias com o nexo possível que a ventania cá dentro o permitir.

1ª corrente de ar (que já tinha soprado ao de leve):
De repente, num momento mais que esperado mas que nunca se quer que chegue, o reflexo por trás da porta de vidro já não sou eu.
Morre dentro de mim uma esperança que se acalenta e se leva no fundo dos bolsos envolto no cotão dos dias. Pedacinhos de tabaco que os maços de cigarros largam com a vontade que os dias não avancem; desprendem-se e seguem deixando-me na ignorância de que uma noite, uma noite destas será a primeira em que o começo a perder. Será de novo a noite mais difícil desde há muito tempo. Já vivi o mesmo sentado ao lado. Já senti os dedos perderem a força de quem não consegue segurar nada de nada. Já me perdi a pensar como será essa noite e porque raio há-de chegar. Porque vai chegar. Como se os dias se levassem por um plano que mais tarde ou mais cedo vai desembocar numa pendente. É uma curva em que subimos o mais que podemos e uma noite destas, uma puta duma noite destas, vamos começar a descer. E se parte de mim não quer essa imagem em pausa, há uma parte que se apoderou do comando e a única coisa que sabe fazer é repetir e repetir e repetir e repetir a mesma imagem vezes sem conta, o mesmo cenário, as mesma possibilidades, os mesmo corredores que não têm luz à noite e onde se ouvem os gritos da idade. Mudos que se ouvem e ecoam e nós surdos que não ouvimos outra coisa senão isso.
Não há banda sonora nesta história. E logo ele que adora música e me ensinou a ouvir de tudo para saber de tudo. São ferramentas, dizia-me tantas vezes e eu, pequeno, não percebia. E são mesmo. É a música que me ajuda e me leva e me trás. A mesma música que os meus filhos cantam vezes sem conta. As notas estão todas lá apesar da ordem poder ser a que lhe quisermos dar. Um dó é um dó e não há dó maior que o de olhar e vê-lo assim.
A mim, que me fez chorar o que escrevia, que me fez chorar de orgulho e de tristeza. A mim, porque um dia largámos a dizer o que não queríamos e chorámos meses baixinho entre um estás bem? e do outro lado, sim.
Doía tanto. E depois passou e ele voltou e voltámos a ser o que sempre fomos.
Ele, o meu pai e eu, o seu filho.

2ª ventania:
Por 3 anos percorri aquelas calçadas sem nunca perder o sentido do que levam e trazem. Não perdi o sentido mas perdi-me e deixei de sentir em mim para sentir ali. Naquele cruzamento mágico onde a luz bate às 3 da tarde e me encostava só para ter o privilégio de poder ali estar. De poder aquecer o corpo e deixar as ideias em lume brado antes de as levar para baixo abrigados do frio.
Por 3 anos subi e desci aqueles degraus vezes sem conta. Aqueles degraus que nunca foram escadas para lado nenhum. Aquelas paredes que não me iludiam na sustentação da estrutura mas me contavam histórias de lágrimas deixadas a correr, de amores ali roçados e de trabalho noite após noite, dia após dia.
Por 3 anos de dia e de noite. Ouvi muito e vi o muito do que podem ser as pessoas; os miúdos apaixonados, os decanos sós que só precisam de quem os ouça.
Por 3 anos ali andei. Quis ser dali, dali mesmo. Daquela pedra partida ao meio. Daquele degrau falhado. Daquela fissura que bem podia parir ideias.
E nesses 3 anos cresci. Nem sempre como se deve crescer mas cresci.

3ª lufada de ar fresco
O que se descobre por acaso faz às vezes melhor à alma que aquilo que procuramos. Há alguma coisa no abismo dos dias que nos faz espreitar para lá das esquinas sem ter medo do que pode ser depois. Como há qualquer coisa nesta noite fria que me faz pensar nas palavras doces que podem ser tão duras como gelo e nas palavras cruas que podem ser tão suaves como o breu.
Há qualquer coisa na dureza de um olhar capaz de destruir um sonho como há qualquer coisa na ternura de um som capaz de fazer explodir um homem.
Há coisas que nos apanham na rede. Somos peixes isentos de guelras que respiram o que sentem. Somos os ventos todos do mar. Somos a soma das coisa e a subtracção do mal. Somo um arco-íris numa viagem de regresso. Somos o sim e o não. Somos o que queremos ser e podemos ser tudo sem ser nada. Somos tudo e somos nada.
Somos de viva voz o que não somos em silêncio. Somos alguém que somos nós sem ninguém dar por isso.
Somos o que quisermos ser sem ter que o ser. Somos o prazer.
Somos a manta no frio da praia a ouvir as ondas. Somos a luz no meio da mata que nos dá o conforto de sabermos onde estamos. Somos a água que rega uma planta e o sol que a faz crescer e tal como o Garrett, nem precisamos de sair do quarto.
Somos o pecado da gula.
Somos o dia. Somos este ar fresco que me arrefece os olhos e me faz chorar. Somos tudo o que queremos sem ninguém nos perguntar. Somos um número por trás do vidro, um nome por trás da porta, uma criança no recreio da alma. Somos a noite. Aberta e fresca como tem que ser. Abafada de mimos e festas e tudo. Aconchegado no meu colo, levo as horas todas comigo para a cama. Deito a cabeça na manhã, na tarde e nos intervalos destes dois. Fecho os olhos. Amanhã é outro tempo de estrear ideias e pensamentos. Mais viagens e caminhos e sorrisos; e se tudo correr bem, carinhos. Mais um pássaro que chilreia na rua quando a lua espreita, solene, nua. Mais uma onda que rebenta e se acaba; e que leva na areia molhada o retrato dos pés de uma criança.
Mais uma ideia que sobe altiva e se perde. Mais uma palavra que se gasta. Mais um sorriso que se aprende. Mais um riso tímido e um deixa lá isso.
Mais um som – sempre as ondas – que ouço ao ir deitar. É sempre o último som antes dos beijos. E é sempre o som dos meus desejos.
Pergunto o que cantarão os pássaros a esta hora da noite e nunca me respondo.
Dispo o dia que fica arrumado e tento dormir. Acordado.

4 comentários:

marion disse...

Increíble. Maravilloso. One more time, I got goosebumps

marion disse...

Realmente merece la pena esperar tantos meses para que luego escribas lo que escribes.

Jô disse...

Às vezes é assim. Há coisas que aparecem sem estarmos à espera e nos enchem os sentidos quando não julgávamos possível. Como as tuas palavras.Continua a juntá-las todas. Fazem frases deliciosas.

catarina disse...

é apenas o segundo texto que leio teu (sem contar com Diz que disse 22...!)e ganhaste mais uma leitora. Não te conhecia esta veia...estou a adorar! Parabéns!