Andava triste já há um tempo. Tanto, que nem conseguia precisar muito bem desde quando sentia essa nuvem pesada e negra sobre a cabeça. Esse desalento quase mortal de tanto que lhe entorpecia os membros. Fazia a sua vida normal de todos os dias e todos os dias pensava que um dia tinha acordado assim, mas não sabia bem porquê. Sabia que de um dia para o outro se tinha dado conta que já não havia paixão, namorada ou amigos. Da família sabia muito pouco e um telefonema de mês a mês bastava para saberem que ele estava (bem). Ele "estava" simplesmente mas a sua tia distante no raciocínio e nos quilómetros que os separavam tinha como “estar bem” ouvi-lo apenas. E ele fazia-lhe essa vontade.
O dia começava cedo – por volta das 7. Acordava, tomava o seu banho e barbeava-se. Vestia o seu fato escuro, a camisa branca e a gravata azul e saía de casa em direcção à estação. Chegava regra geral, 2/3 minutos antes do sonoro apito do combóio e nessa altura, lá se perfilava na quinta pedra preta a contar do 3º banco. Esse era o local que o colocava exactamente junto à 1ª porta da 2ª carruagem. E nada disto era feito com método. Era apenas o hábito e o apito que o impeliam para aquela pedra qual teoria de Pavlov. Aos bons dias envergonhados dos companheiros habituais de carruagem acenava com a cabeça sem abrir a boca. A viagem demorava pouco menos de 20 minutos e a caminhada até ao edifício da seguradora onde trabalhava mais 10. Entrava de olhos colados no chão, despia o casaco e afundava-se nas centenas de processos e papeis e carimbos que o emolduravam na secretária vazia de vida. Aos telefonemas respondia com cortesia mas sem um sorriso que se sentisse na sua voz. Ao meio dia e meia, saía sem aceitar convite algum que lhe fosse feito para almoçar. Mas almoçava, sozinho, metido no meio de um prato do que estivesse a sair. Essa era a sua ementa. E a sua vida. Tudo o mais rápido possível para poder ir para casa, descalçar-se, despir-se e sentar-se em frente à televisão horas e horas a fio. Não havia um objectivo, uma meta, um prazer. Um sorriso. Nada na sua vida o faria abrir a boca para esboçar um ar mais leve.
E foi assim, até um dia ser encontrado em casa, sentado no sofá, com a televisão ligada. Nem vizinhos nem ninguém dera pela sua falta, não fora o chefe do serviço achar estranho que alguém que nunca em vinte e dois anos de serviço tinha chegado atrasado, tivesse um dia faltado. Isso e a estranha arrumação da sua secretária, sem papeis, sem canetas, sem mácula. Limpa como nova e uma nota apenas num post-it amarelo “Está tudo tratado”.