No fundo, esta é a grande injustiça desta doença: faz com que tenhamos saudades das pessoas antes de as perdermos. Faz com que recordemos tudo o que de bom guardamos antes da altura certa. Sentimos a falta que nos fazem quando ainda estão presentes. Precisamos delas quando ainda estão sem estar disponíveis. Precisamos mais do que nunca de as ver quando já não conseguimos encará-las de frente e conter as lágrimas.
E eu que nunca como agora preciso de chorar e não posso. Estou tão cansado. Dói-me o corpo todo de olhar para ti, ver-te desvanecer e não poder fazer nada para te agarrar. Nem eu nem ninguém.
Só que devia ser eu a poder dar-te a mão. Devia e tinha que o fazer, mas é impossível entrar em ti.
Quando percebi que existias e te comecei a conhecer, disse-te um dia que podias largar essa capa de durona inatingível que usavas, que eu iria estar sempre lá para ti. Disse-te que te protegeria, que tomaria as tuas dores. Disse-te e prometi a mim mesmo que o faria. E até hoje nunca faltei com a minha palavra. Nunca.
E hoje tu pediste-me para fazer alguma coisa que não a querias perder e a única coisa que eu te consegui dizer foi que o faria se pudesse. E não posso. A verdade é que não posso. E o facto de o não poder fazer também dói. Queria tanto dar-te um beijo como dou à filha e dizer: já passou. Mas não passa. Nem um milhão de beijos. Já não tens a inocência da nossa princesa e agora quando dói por dentro não há beijo que cure, não há beijo que sare. Eu sei que dói quando se ama e se vê alguém sofrer. Sei que dói e muito. Mas não sei o que é perder quem nos deu vida, quem nos deu colo. Não sei o que é perder quem nos tratou as feridas, mesmo aquelas que se tratavam só com um beijo.
sexta-feira, março 31, 2006
quarta-feira, março 29, 2006
Posso / Não Posso
Já não vamos ou ao cinema tantas vezes como antes. Já não vamos jantar fora sempre que nos apetece. Já não tiramos 2 noites para ir, simplesmente. Já não posso abrir a janela do carro numa noite como a de hoje e ir até onde a música me levar. Já não posso aceitar os convites todos para todos os jantares. Já não posso pôr a música alto quando me apetece. Já não podemos passar uma semana fora sem horários. Já não podemos ir passear à noite para a praia até que nos apeteça.
Há muita coisa que não podemos fazer, mas podemos esperar que amanhã ela acorde com aquele sorriso lindo, o cabelo à frente dos olhos e diga: Olá. Bom dia filha. Vamos acordar a mamã?
Há muita coisa que não podemos fazer, mas podemos esperar que amanhã ela acorde com aquele sorriso lindo, o cabelo à frente dos olhos e diga: Olá. Bom dia filha. Vamos acordar a mamã?
De memória:
Tinha mesmo que escrever isto
sábado, março 25, 2006
por nada
és o meu D. quixote de saias que em vez de lutar contra moinhos de vento, tenta a cada minuto derrotar castelos de dor.
sexta-feira, março 17, 2006
Este meu dia
Chovia de manhã quando fui à janela. Saí do banho e ainda com o toalhão enrolado à cintura espreitei a varanda e ao longe, a ondulação forte fazia levantar os barcos ancorados. “que merda de dia” pensei. Voltei ao quarto para me vestir. Em cima da cama, a minha princesinha acabava o seu biberão de leite. Um sorrisinho maroto seguido de um “nã qué maich”. “Queres ir para o chão?” “Chim”. Até parece que é das beiras, mas não é. Tem é 2 anos para fazer no mês que vem e uma chucha colada à boca. Percebe-se o que quer dizer e isso é o mais importante.
Depois da fralda mudada e de vestida, arrancamos para o colégio. “Olhó o mar filha...” “baquinhos” diz ela. “São os barcos sim”. chegamos. Abracinho ao pai. Beijinho ao pai. Até alogo amor. “chau”.
Para um dia que prometia ser mau como o diabo, o sol brilha cá com uma força. Até queima de bom.
terça-feira, março 07, 2006
Próxima Estação: Estação Terminal
Fez o caminho que outros já tinham feito e era a esta altura, uma mulher feliz. Tinha 2 filhas lindas, já mulheres, e 3 netas de cortar a respiração. A mais velha – ainda sem ter 2 anos feitos – e as gémeas – com menos um ano – faziam as delícias da jovem avó. Tinham sido todas uma luz que se acendera dentro dela. A par das suas filhas e dos pais – ainda vivos – as princesas eram a sua luz e os “tão lindas” repetiam-se a cada visita, a cada gesto.
Era para elas que dirigia a sua atenção e eram elas – tão pequeninas – que a faziam levar um pesado barco para a frente. Mas ia.
Como tantas outras mulheres, tinha enfrentado um divórcio penoso e difícil e como tantas outras mulheres tinha conseguido sair do negro buraco da solidão.
Levava a vida por objectivos e apontava a direito rumo às metas. Uma viagem, uma cozinha nova, uma casa de fim de semana. Tudo metas que atingira com esforço e com trabalho mas onde orgulhosamente chegara.
A viagem fizera-se como qualquer viagem. Com altos e baixos, mudanças de estação, confortos e desconfortos, agrados e desagrados. Fizera a sua viagem com discussões, chatices, indisposições. Acima de tudo, fizera a viagem com a consciência de uma boa mãe e a devoção de uma boa filha. Norteara por aí o seu caminho e não falhara.
Feliz ao seu modo e timidamente sociável conhecera algumas carruagens para além da sua. Por curiosidade e desmedida vontade de aprender, agarra-se à pintura com carinho e ostentava com orgulho as suas obras. Perdia horas e reproduzir uma fotografia que achava “bonita”. E finda a tarefa, mostrava-a a toda a gente. “Já viste o meu quadro novo?” e entrava uma neta em cena: “tão linda”.
Eram estes os seus dias mais recentes. Por entre uma ida ao ginásio e as tarefas normais de uma jovem-avó-reformada-ama-das-netas, ainda arranjava tempo e paciência para um jantar com amigos, um passeio de fim de semana, uma ida ao Alentejo.
Por altura do natal, o tempo frio e uma súbita perda de apetite fê-la ir abaixo e temer uma nova operação.
Maldito bicho que teimava em formar-se no corpo com uma cadência estupidamente ritmada e que fazia soar os alarmes de ano a ano.
Mais uma vez, viu-se na injusta rotina de exames repetidos vezes sem conta e diagnósticos que já sabia na ponta da língua. “temos que operar”. Mas desta vez foi diferente. Não foi possível tirar o bicho fora. Não foi possível mudar de carruagem e seguir viagem.
Guinchou no desvio e magoou toda a gente à volta. Fez mossa.
Apagaram-se as luzes da esperança, da vontade, da vida.
A meio caminho da estação com correspondência com “Mais Tempo”, desviou-se o combóio para a Estação Terminal.
Apesar de tudo, a viagem tinha sido boa.
Boa Viagem. Vai com cuidado.
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