terça-feira, novembro 02, 2010
Apanhar as folhas
Aquilo que nos liga – a nós pais – umbilicalmente aos filhos ultrapassa a razão de sentir que se ama, de saber que se ama e de pura e simplesmente, se amar.
Aquilo que nos une, que nos liga, que nos torna uno é qualquer coisa que me transcende e que experimentei sem querer, sem agendar e sem saber porquê.
Uma dor de barriga é uma dor de barriga e mesmo que persista, a maioria dos pais com quem falei assegurou-me que não iam a correr para o hospital à primeira. Nem à segunda, nem à terceira. As dores de barriga dos putos são um mundo de coisas. De coisas que comeram, de excesso de correria, de dores musculares, de dores inventadas, de ronha, de “quero é mimo” e eu sei lá que mais. E em 6 anos, a princesa e o urso tiveram estas todas. Ele em 3 anos teve se calhar até mais do que ela mas é uma questão de feitio – e não tem nada a ver com o feitio da barriga.
Acontece que um destes Sábados a Pim se queixou e como não era a primeira, a segunda, ou a terceira nessa semana – ainda que estivesse a ser medicada por causa de uma infecção respiratória simples – achei que... se calhar não se perdia nada e passava nas urgências só para despistar o que fosse.
E assim foi. Às 2 da tarde entrámos nas urgências e depois de uma rápida triagem (“o que dói princesa?” “a barriga” “então vamos esperar um bocadinho que o doutor já vai ver isso, está bem?”) lá entrámos e a doutora lá a viu e carregou e doeu. E ela não é de se queixar sem doer. E doeu quando se carregou em vários sítios e .... provavelmente será uma infecção urinária. OK. Pensei. Coisa típica de meninas. É natural. É normal. Se calhar as queixas eram disto mas pronto. Sem stress. Façam-se análises. Fizeram-se mas, élasse, o resultado não aponta nada de anormal; nenhum valor estranho.
E dispara a Pim: então e agora? Fazemos uma ecografia?
A médica acha graça que uma piolha de 6 anos se saia com esta. “sabes o que é? Já fizeste alguma?”
“não sei muito bem mas nunca fiz”.
“então agora vais fazer.”
E fizemos. E as primeiras pedras desabaram sobre a minha cabeça. Sim, sou um leigo. Ou melhor, sou uma besta. Quem me manda olhar e tentar perceber o que raio é uma massa com um formato de lágrima na barriga da minha filha? Às perguntas sobre o que será, o técnico (que frisou muitas vezes e de forma clara: eu não sou médico. Os médicos é que depois interpretam o que nós fazemos) chutou para canto.
Voltámos à médica. Cara séria.
Diagnóstico: quisto do Úraco. Perdão???? Quisto o quê? De onde? Em português por favor.
Lá explicou que não era nada de grave e que não tinha a certeza mas que ia chamar o cirurgião de serviço para o ouvir. E ouvimos todos. Ouvimos que o melhor era ir para o D. Estefânia que eles é que são pediatras e especialistas e era melhor.
E se era melhor, fomos.
Chegámos e repetimos tudo outra vez: inscrição, triagem, consulta, análise de urina, ecografia, análise ao sangue e eis que algo difere do primeiro hospital. Aqui há certezas. Aqui, que são especialistas em crianças têm a certeza: é de facto um quisto do Úraco. Coisa rara. Pouco comum. Estranho nunca ter dado sinal. Não haver sintomas anteriores. Se é estranho eu não sei. Que é estranho para mim estar num hospital com a minha filha a ouvir que ela tem que ser internada porque tem uma merda num sítio cujo nome nunca ouvi falar, é. Mais que estranho. Põe-me doente. E como doente, estou pronto a tomar o lugar dela. Cortem-me, abram-me, tirem-me peças. Oh para mim aqui tão disponível, enorme. Vá lá caraças. Metam-se com alguém do vosso tamanho. A minha Pim? Não. A minha Pim não pode ficar internada. Tem 6 anos caraças. Como é que eu lhe explico que ela tem que ficar aqui. A dormir. Aqui no hospital. Como??? Ainda hoje de manhã esteve numa festa com os amigos da escola. Oh que merda.
Mas fica.
Entra a dormir que o sono toma conta dela às 2 da manhã mas tenho que a acordar. A médica quer que comece a fazer antibiótico já. Uma colher? É? Ah... endovenoso.
É para colocar um cateter na minha filha, é isso? É para espetar a mão pequena da minha princesa; para lhe deixar um tubo ligado. O que é isto? Que filme é este?
Por fim adormece novamente, já com a mão ligada a uma máquina que se encarrega de lhe dosear o soro e o antibiótico e mais o que tiver que ser.
Nessa noite a mãe fica. Mas de manhã eu volto. Dou-lhe beijos até não poder mais. Não quero ir. Não as quero deixar. Mas tem que ser. E vou.
Não acredito muito bem nem consigo explicar o que sinto. Sei que me sinto esvaziar. Não me ocorre nada. Não tenho fome apesar de não ter jantado. Não tenho sono apesar de andar nisto há mais de 10 horas. Não tenho nada. Estou infeliz. Tenho a minha filha a dormir num hospital para ser alvo de uma intervenção cirúrgica que terá lugar passados 6 dias.
E esses 6 dias foram vazios de mim. Sabia que tinha de a distrair. Tratar dela. Dar-lhe mimos, presentes, ocupar-me dela – e da mãe. O mais pequeno foi literalmente despachado para o Alentejo sem uma explicação, sem aviso prévio, sem data no bilhete de regresso. E nunca foi assim. Mas desta vez não havia hipótese.
Os dias correm devagar. Muito devagar para as horas todas de entreter uma criança de 6 anos que não é parada. Que gosta de correr, de brincar, de andar de um lado para o outro. De fazer mil e uma coisas nos seus dias. E de repente, horas a fio como grandes calhaus que tentam passar na parte estreita de uma ampulheta. Não passam.
Os filmes sucedem-se. Os desenhos. As conversas. Mais desenhos e filmes e cromos e cadernetas e bonecas e mais desenhos e actividades e outro filme. E ainda não estamos na hora de almoço.
Come pouco. Não tem fome, não lhe apetece. Incomoda-a o “bóbi”. A máquina que leva atrás de si, presa a si. Apita. Paramos: stop-start. Vamos embora. Sensível a bichinha que apita por tudo e por nada – e a paciência que ameaça esgotar-se.
Chegam as visitas. Muitos mimos, presentes e lágrimas escondidas; que dó de alma ver a princesa assim. É a primeira vez e é horrível.
Porque as crianças são assim, ao princípio da tarde já tem uma amiga com quem partilhas as bonecas. Trocam os casos clínicos e os cromos. Eu tenho uma bolinha maluca e tu? Eu tenho um apêndice. Queres ser esta ou esta? Esta, pode ser? É a Barbie princesa da moda.
Fujo de vez em quando para mais um café tirado na máquina das urgências e mais um cigarro na entrada. Bebo o sol quando posso e cafés a mais. Cigarros a mais. Ao segundo dia aguento-me. E tu? Estás bem? Queres que eu durma cá hoje? Estás com um ar cansado.
Não, eu fico. Está bem, mas amanhã quando eu chegar vais a casa descansar. Combinado.
Passa mais um dia. Chega a semana e começam os telefonemas. Os amigos vão sabendo, a família já sabia. Os colegas ligam, mandam mensagens, mandam presentes.
Os dias vão andando, devagar. Hora após hora já sou mais do hospital. Destes corredores que se pintam de várias cores. Da pedra polida pelos passos nas escadas. Já não subo nem desço no elevador. Já sei onde posso parar o carro. Já sei por onde entro e por onde saio. Os seguranças já mandam desejos de melhoras. As enfermeiras já sabem quem somos e nós a elas. E são todas absolutamente fantásticas. Fico sem saber se têm um coração enorme ou se levam um de plástico para o trabalho. Se não for assim, não sei como não se parte. São muitas crianças naquele hospital. São muitas crianças doentes e algumas com doenças que não deveriam ter. E algumas com tempo a mais ali e menos a brincar. Algumas estão ali há meses. Algumas tratam as enfermeiras por mãe porque a mãe está a mais de 3 mil quilómetros e lá, lá não há dinheiro para comprar as máquinas que há aqui no hospital, disse-nos um dia num passeio pelos corredores. A todas trata por mãe e todas o tratam como um filho.
Os dias vão. Segunda, terça, quarta. É amanhã. Amanhã é a operação.
Vai doer pai? Não meu anjo. Dão-te um xarope para ficares a dormir e tu não sentes nada. Sorri. E eu sorrio de volta. Porque na ignorância de quem não passou por isto antes não sei como é o depois.
Chega a hora. Vamos os 3 de mão dada. Pelo elevador, pelo corredor até ao bloco. Chegamos. O mano já lhe veio dar um beijinho de manhã e fartou-se chorar quando percebeu que não vinha para ficar. Até voltar pergunta todos os dias quando acorda: hoje é amanhã?
Estamos lá dentro. A separar-nos está um banco corrido de madeira que faz a fronteira entre a nossa zona e a zona interdita. A passagem faz-se por cima. Mais um beijo e mais outro e não custa nada e sorrisos e piadolas forçadas que a fazem sorrir até desaparecer num corredor. Agora não sei o que fazer. O que é que é que fazemos?
A enfermeira disse que tínhamos de comer. Que o jejum deles não pode ser o nosso e que temos de comer. Vamos agora. Vamos já que a operação demora hora e meia.
Pela primeira vez, saio do hospital pelo meu pé. Descemos a rua e entramos num café. Duas tostas mistas, um bolo a meias que já vai ser difícil empurrar mas tem que ser. E nisto já passaram 45 minutos. Caraças. 6 dias em que os minutos não passam e agora isto. 2 cafés e a conta por favor.
Subimos, passo apressado. Entramos e chegamos onde a deixámos. Esperamos.
Esperamos.
Esperamos. Levanto-me porque não consigo estar sentado. Ouço umas lágrimas sorvidas em silêncio. Faço-lhe uma festa. Levanto-me e espero. Passo atrás de passo atrás de passo até à parede. Giro. Passo atrás de passo atrás de passo atrás de passo. Paro. Viro a cabeça. A porta mantém-se fechada. Faço isto atrás disto atrás disto.
Passou uma hora e meia mais uns descontos desde que entrou. A porta mantém-se fechada. O silêncio silencioso. Os meus passos seguem os meus passos.
Não penso em nada que consiga fixar. Penso em tudo o que não devo. Ilustra-me o meu primo as ideias com uma viagem onde a cabeça só pára nas estações que não devia.
O mundo parou. O relógio não. Questiono tudo, ponho todos os cenários e abato-os com rajadas de “nem pensar; está tudo bem”. Tenho carregadores disso até mais não. Mas a porta não se abre e mais cinco, mais dez. 2 horas. A porta fechada.
Já não sei se sou eu que ando se o chão anda por baixo de mim. A porta fechada abre-se por fim.
Está tudo bem. Correu bem mas era maior do que a médica esperava. Estava mais colado, foi mais trabalhoso. Não deu por laparoscopia. Tentei mas não deu e tive que fazer uma incisão.
Um de vocês pode ir ter com ela.
Eu espero.10 minutos depois uma mensagem: está muito queixosa.
Não imagino. Espero que saia e ainda dormita quando subimos. Tem tubos, sondas, cateteres. Tem dores quando acorda. Não quer a sonda. Não se quer mexer. Cada movimento fá-la gritar. Nem deitada nem de lado nem nada. Pergunta primeiro à mãe e horas mais tarde a mim: vou morrer?
Imagino as dores que não lhe consigo tirar. Imagino.
E o pior é quando grita em silêncio. Abre os olhos grandes. Abre a boca e chora. Não há som sequer. Só dor. Fazemos tudo quanto podemos. Festas, beijos. Já passa amor. Tem calma. Respira fundo filha. E o primeiro dia e meio é isto. Dor atrás de dor atrás de dor.
Parece que todos os passos que dei enquanto esperava foram em cima dela. Aquela barriguinha pequenina, doce, macia.
Não
me
toques.
A pouco e pouco a dor ameniza. A pouco e pouco voltam as novas rotinas intervaladas com dores.
Os sorrisos só voltam quando sai a sonda. De um segundo para o outro. Literalmente de um segundo para o outro.
E esse sorriso fez-nos sorrir outra vez. Bolas. Tinha saudades de a ver assim. A rir, fazer carinhas tontas.
Foram assim 10 dias horribilis.
Perdemos a noção dos dias, das horas. Não tivemos frio nem calor. Não soube nada do mundo e pelo que vi quando acordei deste pesadelo, não perdi nada.
Chorámos, se calhar menos do que devíamos mas não tivemos tempo.
2 dias depois da operação perdi o rumo por momentos. Fui-me abaixo. Desci ao rés do chão do que sentia e sai porta fora.
Chorei por uma coisa tonta. Porque a obriguei a sentar porque ela tinha que se sentar. Era preciso forçar algumas posições. A médica disse. Era preciso. Mas não se explicam estes estados de necessidade clínicos a uma criança de 6 anos que antes disto nunca tinha passado mais que 2 horas num hospital.
E então eu tive de a obrigar a sentar e ela olhou para mim e não disse nada. Mas naquele segundo em que olhou, naquele segundo em que a puxava, devagar com cuidado, ela olhou para mim e odiou-me. E então não aguentei. Sai de fininho porque a minha irmã tinha chegado e ela distraia-se com a tia. E eu sai e chorei porque não consegui suportar aquele olhar de ódio nos olhos da minha filha. E chorei mesmo. E nesse mesmo dia tirou a sonda e sorri porque a vi sorrir.
Que dia.
Sexta tirou os pontos. Está sem dores. Está naquela fase perigosa em que se entra quando aparentemente está tudo bem.
Amanhã regressa à escola e nós ao trabalho. Amanhã regressamos aos dias normais.
Quero rapidamente apagar as lágrimas todas, as dores todas, as marcas. Quero esquecer que estive 10 dias praticamente a viver ali.
Quero esquecer que a minha filha perguntou 2 vezes se ia morrer.
Quero lembrar-me das pessoas fantásticas que trataram dela durante 10 dias – e às vezes, com a palavra certa, também de nós.
Quero lembrar-me do Tó, a quem a Pim deu um filme e que prometemos acompanhar senão regressar ao seu país.
Quero lembrar-me das mensagens todas dos amigos todos. Dos colegas todos que fizeram de um dos dias um Natal antecipado com presentes e postais e palavras doces.
Quero lembrar-me de voltar ali um dia destes como na semana passada para deixar brinquedos para quem lá passa uma noite que seja.
E ontem estive não sei quanto tempo a apanhar as folhas do jardim no Alentejo.
E como eu precisei de um jardim com folhas por apanhar nestes 10 dias.
De memória:
Desabafos
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